sexta-feira

Religião e Ciência - revisto

Se bem se lembram foi apresentada uma acção em tribunal (EUA - Dover, Pensilvânia) contra o ensino da Concepção Inteligente em aulas de ciência, como contraponto à Teoria da Evolução Natural. Os últimos argumentos foram enunciados há quase um mês (4 de Novembro) e agora o caso está a ser ruminado pelo juiz. Não se espera decisão antes do fim do ano.

No entretanto o conselho escolar dessa mesma escola foi votado fora. O sistema americano escolar é muito diferente dos europeus. Os conselhos escolares são eleitos pela comunidade e são estes que decidem como se faz o ensino das matérias. O julgamento parece ter trazido à atenção das pessoas o que o conselho escolar andava a decidir e resolveram que não concordavam.

Vi em dois blogues portugueses a defesa da ideia de que a concepção inteligente é uma vitória contra o dogma científico.

É errado. A a evolução em biologia é tão aceite porque desde que Darwin primeiro esboçou a teoria esta tem vindo a colectar um número impressionante de factos a suportá-la. Não há outra teoria que explique melhor esses factos. Além disso, não há outro ramo da ciência que possa apresentar tal conjunto de material corroborativo. E mais ainda: o estudo da evolução do sistema geológico corre harmoniosamente lado a lado com a evolução do sistema biológico. É consistente com os princípios da química e da física, etc.,etc...

Este debate não é um ataque a um dogma, mas o ataque a uma teoria científica extremamente bem sucedida na sua capacidade de explicação e previsão. Além disso, uma teoria que mexe na concepção muito cara da origem da vida para as religiões. Porque não se deixem enganar. A concepção inteligente é a nova arma de arremesso da religião cristã. Após tanto tempo, os literalistas da fé ainda não conseguiram engolir que o início da Biblia, com o seu paraíso, o seu Deus a criar da lama, o pecado original, é uma história. A luta destes literalistas deixa no ar que é impossível ser-se religioso e acreditar na ciência. O que é errado.

Os pais em Dover não são ateus. São pessoas religiosas, mas como dizia uma das mães queixosas:
"I reserve the right to teach my child about religion. I have faith in myself and in my husband and in my pastor to do that, not the school system."
[New Scientist, Vol.188, n.2523, 29.10.05]

É possível ser um cientista religioso. Contudo, a religião e a ciência devem ter caminhos paralelos e não cruzados. Uma das melhores explicações destes dois pontos de vista li-a no The Economist [06.10.05]:
To illustrate the difference between scientific and religious “levels of understanding”, Mr Haught [professor de teologia que testemunhou no processo] asked a simple question. What causes a kettle to boil? One could answer, he said, that it is the rapid vibration of water molecules. Or that it is because one has asked one's spouse to switch on the stove. Or that it is “because I want a cup of tea.” None of these explanations conflicts with the others. In the same way, belief in evolution is compatible with religious faith: an omnipotent God could have created a universe in which life subsequently evolved.

It makes no sense, argued the professor, to confuse the study of molecular movements by bringing in the “I want tea” explanation. That, he argued, is what the proponents of intelligent design are trying to do when they seek to air their theory—which he called “appalling theology”—in science classes.


Se se diz que não há explicação para um fenómeno, que basta dizer que emana de Deus, então não há ciência. A religião mata a ciência quando mata a pergunta. E ainda que se perseguisse a pergunta aconteceria como o que dizia uma das testemunhas da acusação (Kenneth Miller):
"If you invoke a non-natural cause, a spirit force or something like that in your research and I decide to test it, I have no way to test it. I can't order that from a biological supply house, I can't grow it in my laboratory. And that means that your explanations in that respect, even if they were correct, were not something I could test or replicate, and therefore they really wouldn't be part of science."

Cell biologist at Brown University in Providence, Rhode Island [Nature 438, 11 (3 November 2005)]

Pessoalmente eu penso que a coexistência pacífica de religião e ciência é possível se se visionar a primeira num plano filosófico que pretende responder a questões de ordem moral e ética e a ciência como um método para compreender o mundo material.

Acentuo o facto de que este debate nos EUA se desenrola nas escolas preparatórias e secundárias, onde os currículos são decididos por pessoas que muitas vezes não têm preparação científica e decidem não com base na ciência, mas com base em ideologia. Nas Universidades os currículos são decididos pelos estudiosos especialistas na área. Estes sabem qual é o consenso do momento no que se refere às questões básicas e sabem o que está em controvérsia (dentro da ciência, sem misturas de alhos com bogalhos).

Numa boa Universidade as polémicas também devem ser ensinadas, pois estão-se a preparar profissionais das áreas (sejam eles praticantes ou continuadores da busca de conhecimento), que deverão saber as últimas. Nas escolas preparatórias e secundárias dever-se-ia ensinar o consensual, o que já deu provas e tem uma grande certeza. Ensina-se a base. Para que todos tenham uma cultura geral da ciência e para preparar os que irão prosseguir na Universidade. Esta concepção do ensino pré-universitário não é restrita à ciência. Para que se entenda o que se discute, tem primeiro que se entender o ponto de partida.

Contudo, ensinar ciência não deve ser ensinar um manancial de factos desconexos, que desmotiva o aluno e o leva a exercícios de memorização, no cômputo final inúteis. Ensinar a ciência no seu percurso de becos, de hipóteses que se revelaram erradas, de acrescentos, de descoberta, de momentos de génio e anos de trabalho intenso, chegando ao fim e dizendo: "Hoje sabe-se isto.", penso que é suficiente para mostrar ao aluno que a ciência é na sua essência um processo anti-dogma. Além disso, os programas escolares (pelo menos em Portugal) ao ensinarem a Teoria da Evolução fazem-no no seu contexto histórico, começando pelo que se acreditava ainda antes de existir ciência, passando pelo criacionismo. Eu fui ensinada assim.

Sem comentários: