quarta-feira

Filme matuto


Estes filmes são um espanto. Pode muito bem acontecer que eu saia do cinema a imprecar e a remoer o dinheiro que paguei. Mas depois começo a matutar e acabo por gostar do filme. O apaixonamento tardio torna estes filmes uma experiência distendida e surpreendente, dando-me um prazer que se deslarga como a energia numa bolacha para diabéticos. O último em que isto me aconteceu foi o "Frailty". Se não viram o filme, não continuem a ler. Vou explicar e pôr a boca no trombone.

A maior parte do filme parece não carregar qualquer mistério. Está tudo às caras e só é pedido aquele sentimento dual de horror com alguém que faz horrores, mas pena e misericórdia porque ele é louco. O ator Bill Paxton, que também é o realizador, carrega muito bem o papel e o filme. Assim, uma pessoa muito religiosa tem um sonho em que um anjo lhe diz que é um vingador de Deus. O anjo comunica-lhe o nome de demónios, disfarçados de seres-humanos, e ele tem de os destruir. Os demónios parecem não saber que são demónios, bem, mas claro, o homem é louco. Ele é viúvo e tem dois filhos pequenos, a quem ele exige ajuda. O mais velho dos dois já tem idade suficiente para perceber que o pai está doido e rebela-se o melhor que pode. Portanto, o sentimento dual torna-se agudo, num cenário de um pai amoroso, mas que na realidade está a abusar psicologicamente dos seus filhos, a um ponto tal que é tortura.

Há uma cena, a que não dei grande importância (o homem afinal é louco), em que ele diz ao filho rebelde que o anjo lhe comunicou que ele (o filho) é um demónio, mas que ele (o pai) não acredita e que ambos vão demonstrar ao anjo que ele é dos bons. Um dia o filho rebelde acaba por matar o pai. Ele enterra o pai e diz ao irmão que quando ele (o irmão vingador) um dia vier por ele (o filho assassino) que o enterre ali, junto ao pai. O irmão promete. Esta é uma cena extremamente importante, que só dei conta da importância no fim do filme, como muitas outras. Neste momento, o filho rebelde acredita que é um demónio.

Mais tarde sabe-se que o filho rebelde tornou-se em adulto num assassino em série. Também se fica a saber que o irmão mais novo tomou para si a tarefa divina do pai e acabou por fazer exactamente o que o irmão rebelde estava à espera: veio por ele e destrui-o. E mesmo no fim do filme é dado como certo que o pai não estava louco, que afinal era verdade que deus estava por dentro da história, na sua luta com o diabo e os seus demónios.

Em primeiro detestei esta intromissão de deus na história do filme, mas numa segunda leitura achei muito interessante. O filme mostra no fim que as pessoas que eram escolhidas como demónios, na verdade tinham cometido crimes horrorosos. De uma certa forma está a dar uma explicação para os criminosos: eles são demónios, ainda que o não saibam. É por isso que fazem o que fazem. É por isso que há pessoas que não resistem a matar ou violar. Numa altura em que se faz a procura desta intrínseca maldade nos genes destas pessoas, o filme diz que sim, que nasce com elas, mas porque não são pessoas, são demónios. Outra leitura extremamente interessante, é aquele filho que se torna assassino em série. Nós sabemos que quando ele mata o pai, há uma viragem para ele: ele é aos seus próprios olhos um demónio. Mas ter-se-á tornado ele um demónio porque o é ou porque o aceitou ou porque a experiência que sofreu na infância o transformou nesse demónio? Lembra a Bíblia, no que nesta contém de confuso entre o livre arbítrio do ser humano e o que já está previsto. Deus sabe antes que o faças, o que vais fazer, mas então como incluir aqui o livre arbítrio? Se for da sua natureza alguém ser um demónio, possui esse alguém o livre arbítrio de o não ser? E se Deus levou a essa transformação em demónio, quem é afinal culpado? É impressionante que um filme como "Frailty" possa conter este tipo de questões, que são velhas questões filosóficas e teológicas, e a inclusão disto num filme de horror (de bom gosto, já que não procura chocar o espectador com imagens explícitas gratuitas, apesar do que possam ter pensado com a figura que pus ali encima) e suspense é delicioso.

Sem comentários: