Antes do acórdāo propriamente dito há um texto de introdução. É um texto quase ternurento na sua ingenuidade. Foi decerto escrito por um estudante de leis que escreve o que pensa que deve ser em vez do que é. Ou então foi escrito por um corpo de justiça já formado e em funções que não entende o que é uma decisão fundamentada. Porque dizem eles, o que nos querem mostrar com a transcrição integral do acórdão são os fundamentos das decisões, pois "Não basta conhecer alguns reflexos de uma realidade, para conhecê-la." Agora que li o acórdão INTEGRAL fico embasbacada quando retorno a ler a introdução. Se os elementos do nosso corpo de justiça escrevem aquilo antes do acórdão, então não é um caso pontual de incompetência. Todos os acórdãos e todos os juízes têm a mesma ideia do que é uma adequada fundamentação das suas decisões e a mesma ideia dos reflexos da realidade que interessa conhecer. Eu li o acórdão e andei desesperadamente a procurar certos reflexos da realidade que eu acho fundamentais, notas a dizer que afinal não é a versāo integral, uma nota de uma adenda em falta, informação que existe, mas não foi incluída, algo que negue a integralidade do acórdão! Parece que não. Penso mesmo que irei ter pesadelos com esta palavra: integral. E com relevância.
Mas venham, entremos no acórdão. Qual é então a realidade que interessa conhecer? A descrição dos factos (com uma incongruência: ele começou a procurar crianças no ano 2000, mas nesse mesmo ano ele já tinha fama de abusar sexualmente de crianças, o que ou não está bem ou os rumores na terra é pior que fogo no mato. O homem ainda não tinha pensado e já o pessoal sabia) (com detalhes de extrema importância como a cor dos carros que usava quando abordava os rapazes). Das vítimas sabemos que são menores e do sexo masculino. Do acusado sabemos muito mais: a profissão, o estado civil, elementos da sua história, que não teve um pai presente, que era o mais novo de seis irmãos, de diferentes pais, mãe negligenciadora, ele os irmãos cresceram entregues a si próprios, fez a quarta classe com dificuldade, demonstrando problemas de aprendizagem, etc. Ou seja, o homem teve um crescimento difícil. O meu pai, o décimo primeiro de um magote de 12, que perdeu a mãe aos oito anos de idade, com um pai abusador, que foi criado ao deus-dará pelas irmãs, que fez a primeira classe mal, que sofreu fome, frio e necessidades que ainda hoje, sessenta anos depois lho podemos ler nos olhos, presumo que o meu pai neste jogo dos coitadinhos era bem capaz de ter uma pena ainda mais diminuída. Se calhar deviam dar uma medalha ao meu pai por nunca ter andado a molestar rapazes. Uma ideia. Contactem-me para eu lhes dizer onde ele mora.
Sabemos também que mantém uma relação afectiva estável e equilibrada com a cônjugue e os dois filhos. Aqui o meu pai ia ter a ficha estragada. O que me dá outra ideia: se calhar o facto de terem uma relação conjugal boa, faz os acusados vingarem-se da vida difícil de outras formas. Ou seja, o facto dele ter um bom casamento é um indício da sua culpabilidade! Podem usar este marcador para a decisão experiente em outros casos. Eu sei que isto não é fundamentado, mas estou a entrar no jogo mental dos senhores juízes. Todos podemos jogar o mesmo jogo. A diferença fundamental aqui é que eu escrevo num blogue e os senhores juízes influiem em vidas.
A descrição sobre a vida do arguido antes, durante e a fé para depois continua e quase nos sentimos mal que o homem vá para a cadeia. Deixo uma frase: "No seu quotidiano, o arguido privilegiava os momentos passados em contexto familiar e no exercício da sua actividade profissional, mantendo por isso escassas e pouco aprofundadas relações de amizade e convivência no contexto social. Contudo, beneficiava de uma positiva integração ao nível comunitário, sendo a sua imagem social relativamente favorável." O relativamente deve estar ali porque havia rumores na comunidade de que ele gostava de rapazinhos. Esta frase poderia ter sido escrita doutra forma. Poderia ter-se pegado na mesma base e ter-se escrito a frase de uma forma negativa. A realidade que nos dão no acórdão foi claramente escolhida, dando-nos o arguido numa luz boa. As vítimas simplesmente não existem para lá da descrição dos factos. Não sabemos sobre o seu ambiente familiar, não sabemos como estão a lidar com a agressão, não sabemos se as suas famílias os irão poder apoiar, não sabemos se tinham, têm, terão boas notas na escola, não sabemos como a comunidade os olha ou trata, não sabemos absolutamente nada das consequências dos actos do arguido! Pergunto-me como é que se define a culpa (e portanto a punição) sem saber as consequências dos actos do agressor sobre os rapazes? Ou seja, há uma página sobre o réu na atenuação da culpa e nada sobre as vítimas.
Importante para definir a punição é quem foi ter com quem, onde andaram os pénis, o estado de entumescimento dos ditos, o não ter sido provado coito anal e a idade das vítimas. Para esta frase "Por outro lado, não sendo necessária a coacção para a relevância da agressão ao referido bem jurídico, nos termos sobreditos, a verdade é que é diferente, em termos de ilicitude, ter ou não existido coacção, assim como é de considerar, em sede de determinação concreta da pena, o grau de desenvolvimento do menor, não sendo certamente a mesma coisa praticar algum dos actos inscritos no âmbito de protecção da norma com uma criança de 5,6 ou 7 anos, ou com um jovem de 13 anos, que despertou já para a puberdade, como é o caso dos autos, em que a vítima era capaz de erecção e de actos ligados à sexualidade que dependiam da sua vontade, ainda que se possa dizer que essa vontade é irrelevante para efeitos de caracterização do tipo." não se dá qualquer fundamentação especializada. Resta sobre o senso-comum dos juízes. Estes arrogam-se o conhecimento do grau quantitativo de trauma de abuso sexual. Usando o meu senso-comum, que também o tenho e que sendo eu do ramo das ciências naturais e eles das leis, penso estar ao mesmo nível de crédito, eu diria que há certamente uma diferença qualitativa, mas o grau de afectação dependerá mais da vítima em si. Se calhar o puto de cinco anos até nem sofre nada no momento, pensa que é uma brincadeira, talvez a coisa fique a marinar, talvez um dia tenha um eureca ou reprima. O puto de treze anos que já acordou, pode muito bem sofrer uma disfunção na sua estruturalização sexual. Ele acordou, mas ainda está a desenvolver a sua identidade sexual. A questão aqui é que eu não sei, não me parece óbvio e não entendo este graduar de culpa. Tanto eu como os senhores juízes precisariamos aqui de muito mais que o senso-comum.
Outra frase: "Por último, será necessário atentar em todo o condicionalismo que levou o tribunal de 1.ª instância, com o aval da Relação, a qualificar os diversos actos praticados pelo arguido como um crime continuado - condicionalismo em que avulta o facto de o menor ir comparecendo aos encontros marcados pelo arguido, o que veio a suceder sete vezes. Por sua vez, o arguido foi mantendo o seu comportamento sobre este menor, o que foi sendo propiciado pelo facto de o menor não contar a ninguém o que se ia passando, bem como pelo facto de não ser descoberto. Isto, muito embora, o ofendido FF, como se anota na mesma decisão, aliás de acordo com a matéria de facto, não contasse a ninguém, por vergonha e por receio do arguido, que se limitou a "ordenar" ao ofendido que não contasse o que se passava entre eles." Que se limitou a "ordenar". A luz dos factos é, notem bem, vista da objectiva do acusado. Não há aqui um olhar sobre os sentimentos do rapaz, o tumulto que estaria a registar-se dentro dele. O que interessa realmente é que o acusado não o prendeu, não lhe bateu, não lhe apontou nenhuma picareta. Um rapaz de treze anos. Se é para usar o senso-comum: nenhum dos juízes foi um rapaz de treze anos?
Outra: "Neste condicionalismo, considerando que o dolo, sendo directo, não apresenta especificidades em relação ao dolo requerido pelo tipo, e que a ilicitude é mediana, para usar a expressão usada na decisão da 1.ª instância, corroborada pelo acórdão da Relação, considerando ainda as circunstâncias relativas à personalidade do arguido e que foram destacadas na decisão recorrida a partir do relatório social, reproduzido na sua essência na factualidade provada, a sua primariedade, a sua integração familiar e, de acordo com a própria decisão condenatória, a sua estigmatização no meio em face deste processo, apesar de anteriormente se poder considerar que o arguido estava plenamente integrado socialmente , a pena aplicada mostra-se claramente excessiva e desproporcionada, justificando, assim, a intervenção correctiva deste Supremo Tribunal."
De novo, notem a ausência da vítima e o que se usa para abono do acusado, incluindo a sua actual estigmatização. Desde quando uma pena definida pelos tribunais é relativa a uma já apercebida pena social? Isto é para mim ridículo.
Eu podia continuar, mas estou cansada. Há mais uns pontos de bradar aos céus, mas estou aqui já há um tempo e estou a ficar sem bateria. O que eu gostaria de demarcar é que este não é um caso isolado de fundamentação incompetente, baseada num senso-comum duns senhores juízes. Isto é o estado da justiça e os juízes que temos. Muito cuidado em serem vítimas e já sabem, se forem atacados e se conseguirem defender-se e partirem uns dentes ao perpretante, é bem capaz de serdes acusados de maus-tratos.
P.S.: E se tiverdes mais de catorze anos, já haverá uma página sobre vós no processo, para demonstrar como estáveis mesmo a pedi-las.
P.S.2: Mas vejamos pelo lado positivo: as vitimas eram do sexo masculino. Se fossem do sexo feminino era pior. Era bem capaz de se ter decidido, logo em primeira instância, que não tinha havido crime.
1 comentário:
Parabéns pelo post.
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