quarta-feira

Tédio

Pára-me de repente o Pensamento...

— Como se de repente sofreado

Na Douda Correria... em que, levado...

— Anda em Busca... da Paz... do Esquecimento



— Pára Surpreso... Escrutador... Atento

Como pára... um Cavalo Alucinado

Ante um Abismo... ante seus pés rasgado...

— Pára... e Fica... e Demora-se um Momento....



Vem trazido na Douda Correria

Pára à beira do Abismo e se demora



E Mergulha na Noute, Escura e Fria

Um Olhar d’Aço, que na Noute explora...



— Mas a Espora da dor seu flanco estria...



— E Ele Galga... e Prossegue... sob a Espora!



Ângelo de Lima. Publicado em várias revistas literárias, com ligeiras alterações, de 1900 (O Portugal) a 1935 (Sudeste).



Ler um poema é também dialogar com as suas leituras anteriores e virtuais. Não posso deixar de mencionar que, embora o soneto não tivesse título no original autógrafo, e assim tenha sido mantido pelo seu editor, recebeu às vezes, nas versões publicadas, o de Tédio. Não se trata, obviamente, de um título escolhido ao acaso. As imagens e o ambiente do poema prestam-se, sem dúvida, à aproximação com a literatura do «mal do século», o spleen ou melancolia. Alguns dos temas e motivos encontrados no «dicionário da melancolia» (Pierre Dufour), em autores como Baudelaire e Borges, reconhecem-se no texto: a escuridão, a dor, a obsessão pela queda no abismo, a figura debruçada sobre o abismo ou sobre o espelho, etc. Essa leitura condiciona-se também pela circunstância de ter estado o poeta internado no hospital psiquiátrico de Rilhafoles, desde 1901 — isto é, um ano depois da primeira publicação do soneto (O Portugal, 12.6.1900) —, até a sua morte em 1921, o que talvez motivasse Fernando Pessoa a observar, ao publicá-lo no Sudoeste, em 1935, que nele o poeta descreve a sua entrada na loucura, em que longos anos viveu e em que morreu.

A controversa possibilidade de que a linguagem seja apta a dar voz à loucura (por mover-se fatalmente dentro dos limites da racionalidade) obriga-nos a tomar a observação de Pessoa com cuidado e, libertando-a do círculo logocêntrico, removê-la para zonas limítrofes. Com efeito, estudos sobre a literatura melancólica, a relação entre melancolia e gênio e o «discurso da loucura» têm ajudado a mapear territórios que, sem se distinguirem com absoluta nitidez, configuram tendências e delineiam certas zonas passíveis de sobreposição parcial: os discursos da cultura e da poesia e o discurso clínico. Desse ponto de vista, a experiência do tédio pôde ser considerada uma situação preliminar à precipitação na melancolia psicótica, e essa, às vezes, ser vista coexistindo, num mesmo autor, com a melancolia como estado de ânimo. O que aproxima os textos melancólicos, em geral, do poema de Ângelo de Lima, além dos motivos já mencionados, é a particular vivência do tempo: a oscilação entre a exaltação e a tristeza, com tendência à imobilização e rigidez, nulificando a dor e a esperança. O próprio Ângelo de Lima, na sua Autobiografia, confessa que se conservava horas imóvel quase na contemplação e reflexão sobre um só objecto, brinquedo ou espectáculo da natureza, atento fixo. Toda experiência de tédio ou de melancolia faz-se acompanhar de uma modificação na percepção do tempo, que se retarda e se detém, na sua fase depressiva. A assimetria entre o tempo interior, que tende à inércia, e o do mundo objetivo, constitui, dessa forma, uma categoria hermenêutica essencial para entender a profundidade da modificação fenomenológica do tempo na melancolia e no tédio (E. Borgna). Na vivência do tédio, portanto, o alongamento ou a extensão do presente traz como conseqüência a perda da noção de futuro e a redução do passado à sensação de aceleração que precede o presente. Já vimos como essas duas dimensões temporais são o arcabouço do soneto em causa.


Yara Frateschi Vieira

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