segunda-feira

Ser denominável

Quando li este texto da Fernanda Câncio, lembrei-me de uma pequena história verdadeira. Fui a um piquenique. Nesse piquenique estavam dois cachopos que eram amigos do peito e que não se viam há algum tempo. Tinham sido companheiros numa instituição de acolhimento, até que um deles foi adoptado. O piquenique tinha sido combinado para eles se encontrarem e estarem juntos novamente. Eu fui de reboque. O cachopo que não tinha sido adoptado era um pequeno terrorista, cujas armas eram o politicamente incorrecto. Era confrontacional e a primeira coisa que fazia quando conhecia alguém era lançar bocas, mas tão absolutamente certeiras que causava admiração. Algumas não eram óbvias, mas via-se nas expressões surpreendidas e feridas que ele tinha acertado e havia ali sangramento. Mesmo que as pessoas fingissem que não. Na altura não lhe sabia o passado (perguntei mais tarde e não conto, mas é triste, muito triste e é triste ter maus pais), mas dava para perceber que naquele corpo pequeno havia muita revolta. Eu também fui logo eficientemente acertada (eu sorri o sorriso amarelo que é a única opção, porque pior que ser acertado é assumir que se foi acertado), mas simpatizei com ele. Penso que no fim do piquenique, só eu e um outro senhor é que o adorávamos, numa anti-reacção a toda a gente que o detestou. O reencontro dos dois amigos foi de uma alegria exuberante, mas ao longo do dia foi-se desenrolando uma pequena tragédia, porque eles agora já não eram iguais. Um tinha sido adoptado e o outro não e isto afinal era um cisma que nem ser pequeno ultrapassa. Tudo subtil e que só entendi completamente depois. Havia amargura nas corridas, alguma tristeza nos risos, inveja q.b. Mas eles eram ainda amigos, até que o cachopo não adoptado chamou "preto" ao cachopo adoptado. Este ripostou que não era preto, que era castanho e demonstrou com as cores à sua volta. Os adultos riram com a resposta e não se pensou que o cachopo adoptado, ao fim do dia, fosse dizer aos pais que não queria nunca mais ver o amigo. Quando me contaram este desenlace, percebi que aquele pequenique tinha sido uma grande tragédia para ambos os companheiros. O que parecia ir ser um piquenique banalérrimo, que hoje eu teria esquecido, ficou-me gravado. Fui sempre pensando na sorte de ambos os amigos. Só os vi naquele dia e continuo a perguntar por eles quando encontro pessoas que ainda poderão ter notícias deles. Eles realmente nunca mais se encontraram. Talvez agora, adultos? Sei que o pequeno politicamente incorrecto, felizmente, encontrou alguém que finalmente o amou (apesar das bocas que lhe terá presenteado no início) e gosto de imaginar que lhe tirou a necessidade de ser mau com palavras. Admiro uma senhora que nunca vi, mas que resolveu ver por baixo da revolta. Que ele nunca mais perderá amigos porque, num momento menos bom, os chama "pretos". Porque outro alguém viu através da sua superfície de revoltado, o puto fantástico que ali estava. Porque o amigo dele era castanho na pele e ele era branco na pele, mas, para além disso, tinha a cor da raiva e seria fundamental para ambos que as pessoas pudessem ver para lá das cores á superfície. Pelo menos, os adultos.

Esta história nao segue o raciocíno da Fernanda Cancio. Na minha história o chamar "preto" veio de amargura e o amigo nao perdoou e nao o recrimino por isso. Parece-me até que o miúdo branco tem mais a ver com a história da Fernanda Cancio, porque, na altura, o que me causou uma certa piedade foi o facto de todos aqueles que o nao conheciam antes do piquenique, o terem tomado pelo que ele era á superfície. Isto adultos, que supostamente tem mais que dois dedos de testa. Mas também nao tem a ver com a história da Fernanda Cancio, porque usar óculos ou ter cor nao diz absolutamente nada sobre a pessoa. As pessoas continuam a ser todas elas desconhecimento, sao potenciais tudo, pelo que pessoas inteligentes deveriam deixar de ater-se a adjectivos tao vazios. Ser gordo ou revoltado já pode dizer algo mais sobre a pessoa e talvez diga que essa pessoa o menos que precisa é ser posto numa gaveta, principalmente quando é uma criança. Mas se os adultos sao estúpidos, como seria possível que os seus filhos nao o fossem? A Fernanda Cancio nao está a falar dos putos, está a falar dos pais dos putos que nao acham mal nenhum que se chame nomes aos outros. Faz parte do crescimento, parece. Para quem levou um selo faz parte do crescimento lidar com o que lhe chamaram. O que é verdade. Quem foi denominado tem de lidar com os sentimentos de inferioridade que lhe foram inculcados. Se tiverem sorte, é só na escola. Sei de uma história de heroísmo, de uma pessoa com deficiencia motora que teve de lidar com a própria mae, que a queria em casa, porque tinha vergonha que lhe vissem a filha. E dizia-lhe para ela perceber bem que ela era entrevada, uma coitadinha, e que era uma vergonha que ela andasse por fora, a estudar, a sair com amigos e, miséria das misérias, a ter namorado. Diz-se que o que nao mata, fortalece. Os putos que chamam nomes na escola nao sao revoltados, sao, na sua maior parte, somente mal-educados por pais que depois vao para as caixas de comentários dizer que deixar os putos serem mal educados é parte do crescimento dos que levam com a má-educaçao. Se isto nao é estupidez, nao sei que outra coisa seja.

Sem comentários: