Andisheh Avini 2007
Installation View, I-20 Gallery, New York (February 20 - March 24, 2007) (Photo: Cary Whittier)
Estive a ler um livro sobre o genocídio no Ruanda: "Une saison de machettes" no original, mas eu li a edição americana. Consiste em entrevistas a um grupo de assassinos e apartes do autor. Este é um livro posterior a um outro, em que o autor, Jean Hatzfeld, entrevistou sobreviventes do massacre, livro este que pretendo ler também.
Obviamente que um primeiro passo ao ler este livro será entender o que é genocídio. Especialmente, quando esta é uma palavra usada sem discriminação, como hipérbole em hipérboles. O dicionário diz "destruição metódica de um grupo étnico, pela exterminação dos seus indivíduos." Jean dá uma definição que, para mim, contém o essencial elemento distintivo:
Será possível distinguir um genocídio entre o caos de uma guerra? A resposta (...) encontra-se noutra questão, simples e decisiva: quem são as vítimas de escolha?
Na guerra, os homens sāo mortos primeiro, porque eles sāo os mais prováveis na resposta armada; a seguir estão as mulheres que os poderão ajudar, os rapazes que irão tentar continuar o conflito e os velhos que podem dar conselhos de saber. Mas num genocídio, o assassino persegue todos, em particular bébés, raparigas e mulheres, porque elas representam o futuro.
Toda a envolvente de um genocídio sente-se irreal. Os que vemos à distância, queremos, imaginamos, esperamos, uma explicação que coloque o genocídio no domínio da loucura. Nós, os normais, não poderiamos ser assim. Doença colectiva que queremos compreender nos sintomas. No entanto aquelas pessoas são normais. A doença é humana e é o sentimento de pertença a uma tribo ou a uma nação (utilizando tribo para todas as associaçoes que nao sejam de estado: base religiosa, étnica, morfológica, tudo enfim em que a imaginaçao humana se baseia para criar linhas entre seres humanos).
Testemunho de Pio: No início de um genocídio existe uma causa, uma razão e pessoas que o acham vantajoso. A causa não chega por acaso; é afinada pelos intimidadores: o desejo de ganhar de vez o jogo. Contudo, as pessoas que são tentadas são as que por acaso vivem ali. Eu estava lá, em casa, quando a tentação veio chamar por mim. Eu não estou a dizer que fui forçado por Satanás ou algo assim. A ganância e a obediência levaram-me a achar a causa vantajosa e, assim, corri para os pântanos. Mas se eu tivesse nascido na Tanzânia ou na França, eu estaria longe da comoção e da sede por sangue.
Pessoas simples não podem resistir uma tentação como aquela, não sem a salvação da Biblia, pelo menos, não naqueles montes. Porquê? Por causa das maravilhosas palavras de sucesso total. Elas ganham-te. Depois a tentação não pode ir para a prisão, pelo que as pessoas são presas. E, mais à frente, a tentação pode reaparecer tão pavorosa quanto antes.
Quando alguém vê o seu melhor interesse vir na sua direcção e na dos seus colegas, essa pessoa não perde tempo à espera, a hesitar, essa pessoa já não considera sentimentos, já não ouve pedidos de piedade. Ele vê o Mal na forma do Bem e fica satisfeita. Ele pensa no que pode ganhar para si e para a sua família até ao fim dos seus dias. Ele segue o seu melhor interesse nos pântanos.
Depois, ele limpa-se da lama e do sangue e bebe uma cerveja. Isto foi o que eu fiz. Eu não nego a minha culpa. Mas eu sou, não só punido pelo meu erro, mas também pela minha má sorte.
O primeiro sintoma é a aceitação da linha de ruptura fictícia e a continuada malignização dos outros. Existe no domínio extremamente humano da incongruência. As pessoas conseguem e fazem-no automaticamente todos os dias: albergam duas ideias opostas dentro de si, sem racionalizarem a antítese.
Testemunho de Jean-Baptiste: Os Hutus sempre criticaram os Tutsi pela sua altura e por tentarem usar isto para mandar. O tempo nunca curou este rancor. Em Nyamata, como eu lhe disse, as pessoas diziam que as mulheres Tutsi pareciam demasiadamente magras para trabalharem nos nossos montes, que a pele delas era macia porque secretamente bebiam leite, que os seus dedos eram demasiadamente delicados para agarrar uma sachola e toda essa parvoíce.
Na verdade, os Hutus não viam nada disso nas mulheres Tutsi na sua vizinhança, que dobravam as costas lado-a-lado às mulheres Hutus e que iam buscar a água da mesma maneira. Contudo, os Hutus gostavam de repetir esta conversa. Também gostavam de dizer que um Hutu com uma mulher Tutsi era só para se armar, como no meu caso.
Eles tinham prazer em espalhar o mais inacreditável lixo para criar uma fina linha de discórdia entre os dois grupos étnicos. O importante era manter a distância entre os grupos e tentar agravar a situação. Por exemplo, no primeiro dia de escola, o professor tinha, ao chamar os alunos, de referir a origem étnica, de forma a que os Tutsi sentissem receio ao tomar os seus assentos numa classe de Hutus.
Testemunho de Pio: Talvez não odiássemos todos os Tutsi, especialmente não os nossos vizinhos e talvez não os víssemos a todos como inimigos. Mas entre nós diziamos que não queriamos viver mais com eles. Diziamos até que não os queriamos ver à nossa volta, que os queriamos fora da nossa terra. Dizer isto é grave - isto já é o aguçar da machete. Eu, eu não sei porque é que comecei a odiar os Tutsi. Eu era novo e o que eu mais gostava de fazer era jogar futebol: eu jogava na equipa de Kibungo com outros rapazes Tutsi da minha idade, passávamos a bola entre nós sem problemas. Nunca notei desconforto na companhia deles. O ódio apareceu na altura da matança; eu imitei os outros na sede do ódio, para pertencer ao grupo.
Testemunho de Léopord: É estranho falar de ódio entre os Hutus e os Tutsi, porque as palavras mudaram de significado depois da matança. Antes, nós podiamos estar na galhofa a dizer que os íamos matar a todos e no momento seguinte estar a compartilhar com eles uma bebida ou trabalhar lado-a-lado. Misturávamos as piadas e as ameaças. Já nem ouvíamos o que dizíamos. Podíamos pronunciar palavras horríveis sem pensamentos horríveis. Os Tutsi nem ficavam muito chateados. Quer dizer, eles não se iam embora quando começavam aquelas discussões. Mas agora pudemos ver: aquelas palavras trouxeram consequências terríveis.
A ideia está ali a gravitar: aqueles são outros, maus, perigosos, diferentes, manhosos, desmerecedores da vida, outros. Mas o mais fundamental e surpreendente é o poder da palavra. Num momento em que se discutem as palavras e o politicamente correcto como entediante censura social, seria importante aprender a lição de que as palavras têm poder. Chamar escarumba, paneleiro, puta, judeu a alguém, é mais do que dar nomes, é colocar aquela pessoa numa determinada esfera humana, que segundo o sentido dessas palavras pode ser uma esfera para lá dos laços de irmandade que nos protegem mutuamente do mal que somos. Não é o politicamente correcto que está a reinar, quando escolhemos ter cuidado com as palavras, mas aceitar o poder das palavras como decantadores de ideias, preconceitos, semente de violência contra o grupo adjectivado. Ter cuidado com as palavras que se usam com as pessoas é o humanamente correcto. É ter a inteligência de aprender com a história quem somos e do que somos capazes.
Testemunho de Adalbert: O genocídio não é uma ideia de guerras e batalhas. É uma ideia que as autoridades têm - de se livrarem de um perigo de uma vez por todas. Uma ideia conveniente que não necessita de ser nomeada ou encorajada, para lá de umas orquestrações maliciosas. É uma ideia bastante comum quando voa de palavra em palavra, por vezes, de piada em piada; torna-se extraordinária quando é apanhada na ponta das machetes.
Esta ideia não morre com as mortes, não morre depois da vitória ou depois da derrota. Autoridades no futuro podem recuperá-la para outro destino. Mas como pode alguém matar uma ideia, usada de forma tão extraordinária, se não se souber como matar a palavra, que a pode chamar à vida? Matar os inimigos, matar quem nos faz mal, matar os vizinhos - isto pode-se entender. Matar ideias e palavras - isto vai para além da inteligência, a inteligência de um camponês, pelo menos.
Tradução minha.
(continua)