quinta-feira

Quando se quer exterminar os outros


Andisheh Avini 2007
Installation View, I-20 Gallery, New York (February 20 - March 24, 2007) (Photo: Cary Whittier)


Estive a ler um livro sobre o genocídio no Ruanda: "Une saison de machettes" no original, mas eu li a edição americana. Consiste em entrevistas a um grupo de assassinos e apartes do autor. Este é um livro posterior a um outro, em que o autor, Jean Hatzfeld, entrevistou sobreviventes do massacre, livro este que pretendo ler também.

Obviamente que um primeiro passo ao ler este livro será entender o que é genocídio. Especialmente, quando esta é uma palavra usada sem discriminação, como hipérbole em hipérboles. O dicionário diz "destruição metódica de um grupo étnico, pela exterminação dos seus indivíduos." Jean dá uma definição que, para mim, contém o essencial elemento distintivo:

Será possível distinguir um genocídio entre o caos de uma guerra? A resposta (...) encontra-se noutra questão, simples e decisiva: quem são as vítimas de escolha?

Na guerra, os homens sāo mortos primeiro, porque eles sāo os mais prováveis na resposta armada; a seguir estão as mulheres que os poderão ajudar, os rapazes que irão tentar continuar o conflito e os velhos que podem dar conselhos de saber. Mas num genocídio, o assassino persegue todos, em particular bébés, raparigas e mulheres, porque elas representam o futuro.

Toda a envolvente de um genocídio sente-se irreal. Os que vemos à distância, queremos, imaginamos, esperamos, uma explicação que coloque o genocídio no domínio da loucura. Nós, os normais, não poderiamos ser assim. Doença colectiva que queremos compreender nos sintomas. No entanto aquelas pessoas são normais. A doença é humana e é o sentimento de pertença a uma tribo ou a uma nação (utilizando tribo para todas as associaçoes que nao sejam de estado: base religiosa, étnica, morfológica, tudo enfim em que a imaginaçao humana se baseia para criar linhas entre seres humanos).

Testemunho de Pio: No início de um genocídio existe uma causa, uma razão e pessoas que o acham vantajoso. A causa não chega por acaso; é afinada pelos intimidadores: o desejo de ganhar de vez o jogo. Contudo, as pessoas que são tentadas são as que por acaso vivem ali. Eu estava lá, em casa, quando a tentação veio chamar por mim. Eu não estou a dizer que fui forçado por Satanás ou algo assim. A ganância e a obediência levaram-me a achar a causa vantajosa e, assim, corri para os pântanos. Mas se eu tivesse nascido na Tanzânia ou na França, eu estaria longe da comoção e da sede por sangue.

Pessoas simples não podem resistir uma tentação como aquela, não sem a salvação da Biblia, pelo menos, não naqueles montes. Porquê? Por causa das maravilhosas palavras de sucesso total. Elas ganham-te. Depois a tentação não pode ir para a prisão, pelo que as pessoas são presas. E, mais à frente, a tentação pode reaparecer tão pavorosa quanto antes.

Quando alguém vê o seu melhor interesse vir na sua direcção e na dos seus colegas, essa pessoa não perde tempo à espera, a hesitar, essa pessoa já não considera sentimentos, já não ouve pedidos de piedade. Ele vê o Mal na forma do Bem e fica satisfeita. Ele pensa no que pode ganhar para si e para a sua família até ao fim dos seus dias. Ele segue o seu melhor interesse nos pântanos.

Depois, ele limpa-se da lama e do sangue e bebe uma cerveja. Isto foi o que eu fiz. Eu não nego a minha culpa. Mas eu sou, não só punido pelo meu erro, mas também pela minha má sorte.


O primeiro sintoma é a aceitação da linha de ruptura fictícia e a continuada malignização dos outros. Existe no domínio extremamente humano da incongruência. As pessoas conseguem e fazem-no automaticamente todos os dias: albergam duas ideias opostas dentro de si, sem racionalizarem a antítese.

Testemunho de Jean-Baptiste: Os Hutus sempre criticaram os Tutsi pela sua altura e por tentarem usar isto para mandar. O tempo nunca curou este rancor. Em Nyamata, como eu lhe disse, as pessoas diziam que as mulheres Tutsi pareciam demasiadamente magras para trabalharem nos nossos montes, que a pele delas era macia porque secretamente bebiam leite, que os seus dedos eram demasiadamente delicados para agarrar uma sachola e toda essa parvoíce.
Na verdade, os Hutus não viam nada disso nas mulheres Tutsi na sua vizinhança, que dobravam as costas lado-a-lado às mulheres Hutus e que iam buscar a água da mesma maneira. Contudo, os Hutus gostavam de repetir esta conversa. Também gostavam de dizer que um Hutu com uma mulher Tutsi era só para se armar, como no meu caso.
Eles tinham prazer em espalhar o mais inacreditável lixo para criar uma fina linha de discórdia entre os dois grupos étnicos. O importante era manter a distância entre os grupos e tentar agravar a situação. Por exemplo, no primeiro dia de escola, o professor tinha, ao chamar os alunos, de referir a origem étnica, de forma a que os Tutsi sentissem receio ao tomar os seus assentos numa classe de Hutus.
Testemunho de Pio: Talvez não odiássemos todos os Tutsi, especialmente não os nossos vizinhos e talvez não os víssemos a todos como inimigos. Mas entre nós diziamos que não queriamos viver mais com eles. Diziamos até que não os queriamos ver à nossa volta, que os queriamos fora da nossa terra. Dizer isto é grave - isto já é o aguçar da machete. Eu, eu não sei porque é que comecei a odiar os Tutsi. Eu era novo e o que eu mais gostava de fazer era jogar futebol: eu jogava na equipa de Kibungo com outros rapazes Tutsi da minha idade, passávamos a bola entre nós sem problemas. Nunca notei desconforto na companhia deles. O ódio apareceu na altura da matança; eu imitei os outros na sede do ódio, para pertencer ao grupo.
Testemunho de Léopord: É estranho falar de ódio entre os Hutus e os Tutsi, porque as palavras mudaram de significado depois da matança. Antes, nós podiamos estar na galhofa a dizer que os íamos matar a todos e no momento seguinte estar a compartilhar com eles uma bebida ou trabalhar lado-a-lado. Misturávamos as piadas e as ameaças. Já nem ouvíamos o que dizíamos. Podíamos pronunciar palavras horríveis sem pensamentos horríveis. Os Tutsi nem ficavam muito chateados. Quer dizer, eles não se iam embora quando começavam aquelas discussões. Mas agora pudemos ver: aquelas palavras trouxeram consequências terríveis.


A ideia está ali a gravitar: aqueles são outros, maus, perigosos, diferentes, manhosos, desmerecedores da vida, outros. Mas o mais fundamental e surpreendente é o poder da palavra. Num momento em que se discutem as palavras e o politicamente correcto como entediante censura social, seria importante aprender a lição de que as palavras têm poder. Chamar escarumba, paneleiro, puta, judeu a alguém, é mais do que dar nomes, é colocar aquela pessoa numa determinada esfera humana, que segundo o sentido dessas palavras pode ser uma esfera para lá dos laços de irmandade que nos protegem mutuamente do mal que somos. Não é o politicamente correcto que está a reinar, quando escolhemos ter cuidado com as palavras, mas aceitar o poder das palavras como decantadores de ideias, preconceitos, semente de violência contra o grupo adjectivado. Ter cuidado com as palavras que se usam com as pessoas é o humanamente correcto. É ter a inteligência de aprender com a história quem somos e do que somos capazes.

Testemunho de Adalbert: O genocídio não é uma ideia de guerras e batalhas. É uma ideia que as autoridades têm - de se livrarem de um perigo de uma vez por todas. Uma ideia conveniente que não necessita de ser nomeada ou encorajada, para lá de umas orquestrações maliciosas. É uma ideia bastante comum quando voa de palavra em palavra, por vezes, de piada em piada; torna-se extraordinária quando é apanhada na ponta das machetes.

Esta ideia não morre com as mortes, não morre depois da vitória ou depois da derrota. Autoridades no futuro podem recuperá-la para outro destino. Mas como pode alguém matar uma ideia, usada de forma tão extraordinária, se não se souber como matar a palavra, que a pode chamar à vida? Matar os inimigos, matar quem nos faz mal, matar os vizinhos - isto pode-se entender. Matar ideias e palavras - isto vai para além da inteligência, a inteligência de um camponês, pelo menos.


Tradução minha.
(continua)

terça-feira

Fingimento



São gotas grossas, metálicas, que caiem pelos telemóveis. Eu respiro muito devagar. Sou extremamente prática, racional, deixo o meu cérebro possuir-me, recta aguda, sem floreios, uma missiva formal de fim pontuado. Termina. Acaba. Silêncio. A recta transforma-se em punhal, abre-me de cima abaixo e deixa-me a escorrer pelos lençóis da cama. Parece que vou morrer, mas eu sei que é só fingimento do meu corpo. Fecho os olhos e deixo-me ir pelo chão de madeira, o sangue chega às escadas e desce-as, sai para a rua e faz um caminho vermelho invisível. Lento. Gelatinoso. Nojento. Deixo-me ir, mas sei que é só fingimento.


Amber Under Hours 2006
Acrylic and Pencil on Birch Panel
Sherry Wong

segunda-feira

Leituras

The Gross-Out Factor, Pauline W. Chen

(...) Pavlov, of the drooling dog fame, believed that habituation could be simply reversed. Others have asserted that repeat sensitization could interrupt a learned reflex. But for our human quandaries, extricating ourselves from habituation and the inevitable sliding ideals requires another, more complex process altogether. (...)



Welcome to 'Palestine', Robert Fisk

(...) I recall years ago being summoned to the home of a PA official whose walls had just been punctured by an Israeli tank shell. All true. But what struck me were the gold-plated taps in his bathroom. Those taps—or variations of them—were what cost Fatah its election. Palestinians wanted an end to corruption—the cancer of the Arab world - and so they voted for Hamas and thus we, the all-wise, all-good West, decided to sanction them and starve them and bully them for exercising their free vote. Maybe we should offer “Palestine” EU membership if it would be gracious enough to vote for the right people? (...)

sexta-feira

Linoleum



Tweaker & David Sylvian

quarta-feira

Tédio

Pára-me de repente o Pensamento...

— Como se de repente sofreado

Na Douda Correria... em que, levado...

— Anda em Busca... da Paz... do Esquecimento



— Pára Surpreso... Escrutador... Atento

Como pára... um Cavalo Alucinado

Ante um Abismo... ante seus pés rasgado...

— Pára... e Fica... e Demora-se um Momento....



Vem trazido na Douda Correria

Pára à beira do Abismo e se demora



E Mergulha na Noute, Escura e Fria

Um Olhar d’Aço, que na Noute explora...



— Mas a Espora da dor seu flanco estria...



— E Ele Galga... e Prossegue... sob a Espora!



Ângelo de Lima. Publicado em várias revistas literárias, com ligeiras alterações, de 1900 (O Portugal) a 1935 (Sudeste).



Ler um poema é também dialogar com as suas leituras anteriores e virtuais. Não posso deixar de mencionar que, embora o soneto não tivesse título no original autógrafo, e assim tenha sido mantido pelo seu editor, recebeu às vezes, nas versões publicadas, o de Tédio. Não se trata, obviamente, de um título escolhido ao acaso. As imagens e o ambiente do poema prestam-se, sem dúvida, à aproximação com a literatura do «mal do século», o spleen ou melancolia. Alguns dos temas e motivos encontrados no «dicionário da melancolia» (Pierre Dufour), em autores como Baudelaire e Borges, reconhecem-se no texto: a escuridão, a dor, a obsessão pela queda no abismo, a figura debruçada sobre o abismo ou sobre o espelho, etc. Essa leitura condiciona-se também pela circunstância de ter estado o poeta internado no hospital psiquiátrico de Rilhafoles, desde 1901 — isto é, um ano depois da primeira publicação do soneto (O Portugal, 12.6.1900) —, até a sua morte em 1921, o que talvez motivasse Fernando Pessoa a observar, ao publicá-lo no Sudoeste, em 1935, que nele o poeta descreve a sua entrada na loucura, em que longos anos viveu e em que morreu.

A controversa possibilidade de que a linguagem seja apta a dar voz à loucura (por mover-se fatalmente dentro dos limites da racionalidade) obriga-nos a tomar a observação de Pessoa com cuidado e, libertando-a do círculo logocêntrico, removê-la para zonas limítrofes. Com efeito, estudos sobre a literatura melancólica, a relação entre melancolia e gênio e o «discurso da loucura» têm ajudado a mapear territórios que, sem se distinguirem com absoluta nitidez, configuram tendências e delineiam certas zonas passíveis de sobreposição parcial: os discursos da cultura e da poesia e o discurso clínico. Desse ponto de vista, a experiência do tédio pôde ser considerada uma situação preliminar à precipitação na melancolia psicótica, e essa, às vezes, ser vista coexistindo, num mesmo autor, com a melancolia como estado de ânimo. O que aproxima os textos melancólicos, em geral, do poema de Ângelo de Lima, além dos motivos já mencionados, é a particular vivência do tempo: a oscilação entre a exaltação e a tristeza, com tendência à imobilização e rigidez, nulificando a dor e a esperança. O próprio Ângelo de Lima, na sua Autobiografia, confessa que se conservava horas imóvel quase na contemplação e reflexão sobre um só objecto, brinquedo ou espectáculo da natureza, atento fixo. Toda experiência de tédio ou de melancolia faz-se acompanhar de uma modificação na percepção do tempo, que se retarda e se detém, na sua fase depressiva. A assimetria entre o tempo interior, que tende à inércia, e o do mundo objetivo, constitui, dessa forma, uma categoria hermenêutica essencial para entender a profundidade da modificação fenomenológica do tempo na melancolia e no tédio (E. Borgna). Na vivência do tédio, portanto, o alongamento ou a extensão do presente traz como conseqüência a perda da noção de futuro e a redução do passado à sensação de aceleração que precede o presente. Já vimos como essas duas dimensões temporais são o arcabouço do soneto em causa.


Yara Frateschi Vieira

sexta-feira

I like birds



I cant look at the rocket launch

The trophy wives of the astronauts
And I wont listen to their words
cause I like
Birds

I dont care for walkin downtown
Crazy auto-car gonna mow me down
Look at all the people like cows in a herd
Well, I like
Birds

If youre small and on a search
Ive got a feeder for you to perch on

I cant stand in line at the store
The mean little people are such a bore
But its alright if you act like a turd
cause I like
Birds

If youre small and on a search
Ive got a feeder for you to perch on
Ive got a feeder for you to perch on
If youre small and on a search
Ive got a feeder for you to perch on
Ive got a feeder for you to perch on


Eels, I like birds

Eu também gosto de pássaros.
;-)

segunda-feira

Big-Blog (uma grande opiniao, que vos deve dar prá hora do almoço)

Vejo de vez em quando afirmaçoes de hiper-importancia da blogosfera na antítese aos media escritos. Como se fossem substitui-los. Isto seria possível se os media forem tao estupidos (e digamos que é isso que andam a demonstrar) que deixem de oferecer algo que a blogosfera oferece pouco: qualidade. A blogosfera é cacarejo. É divertido, mas corococo.

Além disso, num momento em que uma pessoa é famosa, aplaudida e na escala de sucesso da actualidade, é um expoente público com base em absolutamente nada, veem-se pessoas que realmente sabem e/ou fazem serem desprezadas nessa sua qualidade, como se o que estivesse a dar nos dias de hoje é ser somente imagem ou como se a opiniao de todos em tudo tivesse o mesmo valor. Nao tem. Há um desprezo pelo especialista num ramo do saber, como se quem sabe fosse uma elite e as elites sao um perigo para a democracia. Só que há democracia e meritocracia e esta última precisa de existir para nao entrarmos numa sociedade da parvalheira. Além disso, a própria democacracia melhora se houver alguém que realmente sabe alguma coisa, porque senao é o reino das galinhas: cacarejam e nao dizem nada. Mas anotemos uma ironia imbecil: a contrataçao pelos media de galinhas. Pessoas que tem opinioes em tudo. Isto é impossivel, a nao ser para as galinhas. E é aqui que os media resvalam para a blogosfera e poderao ser ultrapassadas por ela. Porque sao tao maus que mais vale ler a blogosfera! Quer dizer, muito pessoal escreve na blogosfera e escreve nos jornais e fala nas televisoes. Este pessoal nao tem tempo para mais nada senao cagar opinioes!

Contudo, ainda é pior! Para além dos jornais serem mais de metade opiniao, os artigos já nao respeitam aquilo que aprendemos na escola do quem, onde, como, quando. Lá aparece sorrateiramente o penso eu de que. Vamos por as coisas no seu lugar: EU NAO QUERO SABER O QUE OS JORNALISTAS PENSAM. SE ELES QUEREM DIZER O QUE PENSAM QUE FAÇAM UM BLOGUE.

E esta praga do opinianismo alastra-se! Os juízes do Supremo arrogam-se a capacidade de opinar sobre a psicologia do sofrimento, a psicologia educativa, a psicologia da mini-saia no predador-macho, definirem relativismos nisto e nisto basearem sentenças! (Para além que pelas suas opinioes (e isto obviamente é a minha opiniao) já cá andavam quando moisés dividiu o mar vermelho!).

Vejo um fenómeno interessante na blogosfera, que é o lamento de haver blogues da primeira liga (como dizem), como se muitos deles o fossem nao só porque os seus autores sao famosos para lá da blogosfera, mas alguns deles, sao-no porque fazem e escrevem coisas com qualidade (nem que seja qualidade blogosférica). É preciso pensar nesses filtros. Contudo, conceda-se que há pessoal instalado, bastante capaz numa área, a mandar bitaites professorais (e é esta pretensao-pavao que eu acho desonesta) onde nao sabem nada, simplesmente empoleirados na sua fama. Mas nós temos de avaliar de onde saiem as palavras, o que vale quem diz no que fala. E relativizar muito.

Na blogosfera, todos tem opiniao sobre tudo e acham-se no direito de exigir que os outros deem valor ao que escrevem porque está escrito, ainda que como opiniao, o seu valor depende da sua base. Mas, dizem eles, praga das pragas, que quem nao lhes dá atençao é porque é parvo, vendido, nao vemos os inconformistas, os reformadores, os cristos, os profetas, a luz! (Isto lembrou-me "A vida de Brian" dos Monthy Phyton...). Desculpem amigos, o messias já cá esteve e andou. Um pouco de humildade, s'il vous plait. A vossa opiniao, sem mais, tem a importancia que eu lhe dou e eu, e isto é a minha opiniao, nao sou parva.

Uma opiniao é livre, mas para acedermos a algo mais que um monte de palavras que se enfiam em regras gramaticais, com umas ideiazitas por baixo (até o padre da Banheira-de-Cima tem ideiazitas), é preciso mais que somente a capacidade de juntar palavras. Deveriamos poder vislumbrar saber e é esse saber que dá valor a uma opiniao para lá do momentaneo, do conversacional, do social de todos os dias, que antes ficava perdido no ar e que agora fica escrito nos computadores que dao forma 'a internet. Mas ainda que escrito, provavelmente vale menos que nada. Alguém com saber na base da sua opiniao, constrói nao só uma opiniao, mas uma estrutura racional que desagua num horizonte largo em que quem leu progrediu em saber. Saimos do universo das sensibilidades e superficialidades. Os nossos postes sao conversa, a nao ser que haja substancia por baixo. Para sermos verdadeiros á natureza do que é a blogosfera, todos nós deveriamos 99.9999999% fazer exactamente o que o maradona faz: apagar e sermos honestos relativamente 'a efemeridade e banalidade do que escrevemos. Isto é tudo um imenso e divertido cocorococo. Os media deveriam compreender isto, deixar a blogosfera de lado e darem-nos a qualidade de que necessitamos. Senao que anotem que a sua desvalorizaçao nao se deve 'a blogosfera, mas ao facto de serem blogosfera num formato que nao se adequa 'a blogosfera. A tristeza é que acabaremos esmilhafrados num Big-Blog.

Concluindo: isto é conversa de café e muito, muito raramente chega alguém com algo que valesse a pena ficar registado. Lixo, lixo, que se impregna nos átomos. Por isso, párem de narcisismos bacocos, jornais párem de nos importar (ó lástima, ó mundo, o joao miranda a opinar em papel, o maior googlador depois do próprio john google!), que eu sou condessa e me poem tensa.

sábado

O tempo

Não consigo apanhar o tempo. De vez em quando olho o relógio e passou tempo. No entretanto, vivi. E passou. É o que diz o relógio. Um objecto que existe para assinalar o passado e programar o futuro. Detesto relógios. Também detesto calendários. O relógio e o calendário constroem um tempo de fantochada. Como desenhar riscos no chão de cimento, que não podemos pisar, como desenhar setas no chão de cimento, que devemos seguir. Um mundo imaginário que nos faz mover todos aos mesmo tempo. Relógio, gosto do coração que acompanha, batido a segundos, o presente. O meu presente.

quarta-feira

Quem ganha com a G8

Há três características imediatamente detectáveis na polícia de choque alemã:

1) parecem chocantemente profissionais;

2) parecem mais militares que polícias;

3) parece que estão muito mal-dispostos e que nos odeiam as tripas.

Isto é: metem medo. Uma pessoa até pensa que alguém foi mal informado. Nós ali, uns pelintras com uns cartazes, mais parece passeio de sábado de manhã e estão ali aqueles brutamontes com cacetetes e escudos e pistolas (tenho fé que não verdadeiras, verdadeiras) e uns veículos que parecem tanques de guerra, mas esguicham água e mais uns autocarros com ar de nos irem levar para algum torturador. Se isto não fosse a Europa, eu acho que a primeira vez que vi aquela malta borrava-me de medo. Mas isto é a Europa, portanto eles não nos vão fazer mal, pois não?

O problema é que não há manifestações suficientes e aquela malta está entediada. Além disso, os tais tanques devem ter custado uma pipa de massa e eles têm que cobrir os custos. Portanto, isto até pode ser a Europa, mas aqueles gajos vão tentar provocar, vão-nos encurralar e tentar manipular-nos e, se tentarmos sair uma passada do que eles querem, vão-nos esguichar e geralmente não há cacetada, que nós somos gente pacífica, se não não tão parvos que queiramos andar à batatada com pessoal que em pequenino sonhou ser rambo e acabou naquilo. A manifestação acaba por ser um exercício de cães-pastor a brincar com as ovelhas e a guiá-las para uma das estações principais.

Isto é a polícia de choque alemã com uma manifestaçãozeca de sábado de manhã. Por isso não é de espantar o que acontece agora no G8. Veio malta de tudo o que é sítio, com ideias mais férreas de manifestação, que nem de provocação precisam e têm-se as imagens das ovelhas negras para os jornais. Não as ovelhas brancas que a maior parte de nós é. As negras é que são escolhidas para a foto da semana.

Há pouco mais de uma semana, parece ter havido já uma reunião preparatória aqui em Hamburgo. Eu soube porque havia barreiras policiais por tudo o que era sítio. Eu não vi nenhum manifestante, mas vi dezenas de carros de choque e tanques de água, tudo a abarrotar de polícias-brutamontes-andacáquetedigo, com as suas pistolas e cacetetes e escudos e trombas. E as putas das barreiras, que eu um dia em que vinha para casa de bicicleta, andei às voltas no centro e estava a ver que não achava a saída ao labirinto! É um exagero. Só a polícia de choque em Hamburgo tem quantitativos suficientes para dar cabo dos taliban no Afeganistão. Uma coisa é praticamente certa: os polícias-brutamontes-trombudos mal souberam que ia haver G8 na Alemanha devem ter-se-lhes entesado os cacetetes. Aqui em Hamburgo puderam deixar-se, por uns tempos, de esguichar os fãs do Sankt-Pauli (a equipa B de Hamburgo) quando saiem demasiado felizes do Estádio de futebol. Devem ter pensado para as suas pistolas de brincadeirinha: finalmente uma merda a sério.

Enquanto isso, na G8 propriamente dita:

segunda-feira

Do melhor

Porque tive a imensa sorte de conhecer duas bandas absolutamente espectaculares, no Fabrik, a melhor das melhores espeluncas de concertos de Hamburgo, em Altona, o bairro mais inaço de Hamburgo:

Panthéon Rococó, o melhor ska do Hemisfério Norte.

Auktyon, o melhor som e o vocalista com a melhor voz do Hemisfério Norte.

Eu não sei criticar música, digo só e somente que me vai custar a esquecer duas noites memoráveis. Sei lá, se não conhecem, conheçam.

Prost!

domingo

o deserto espraia-se
a vista é igual pra qualquer lado
não interessa o caminho tomado
os passos serão os mesmos passos
na mesma intensa sede
debaixo do mesmo sol
360 graus de vida ardente

sábado

Queda

Relevâncias integrais

Antes do acórdāo propriamente dito há um texto de introdução. É um texto quase ternurento na sua ingenuidade. Foi decerto escrito por um estudante de leis que escreve o que pensa que deve ser em vez do que é. Ou então foi escrito por um corpo de justiça já formado e em funções que não entende o que é uma decisão fundamentada. Porque dizem eles, o que nos querem mostrar com a transcrição integral do acórdão são os fundamentos das decisões, pois "Não basta conhecer alguns reflexos de uma realidade, para conhecê-la." Agora que li o acórdão INTEGRAL fico embasbacada quando retorno a ler a introdução. Se os elementos do nosso corpo de justiça escrevem aquilo antes do acórdão, então não é um caso pontual de incompetência. Todos os acórdãos e todos os juízes têm a mesma ideia do que é uma adequada fundamentação das suas decisões e a mesma ideia dos reflexos da realidade que interessa conhecer. Eu li o acórdão e andei desesperadamente a procurar certos reflexos da realidade que eu acho fundamentais, notas a dizer que afinal não é a versāo integral, uma nota de uma adenda em falta, informação que existe, mas não foi incluída, algo que negue a integralidade do acórdão! Parece que não. Penso mesmo que irei ter pesadelos com esta palavra: integral. E com relevância.

Mas venham, entremos no acórdão. Qual é então a realidade que interessa conhecer? A descrição dos factos (com uma incongruência: ele começou a procurar crianças no ano 2000, mas nesse mesmo ano ele já tinha fama de abusar sexualmente de crianças, o que ou não está bem ou os rumores na terra é pior que fogo no mato. O homem ainda não tinha pensado e já o pessoal sabia) (com detalhes de extrema importância como a cor dos carros que usava quando abordava os rapazes). Das vítimas sabemos que são menores e do sexo masculino. Do acusado sabemos muito mais: a profissão, o estado civil, elementos da sua história, que não teve um pai presente, que era o mais novo de seis irmãos, de diferentes pais, mãe negligenciadora, ele os irmãos cresceram entregues a si próprios, fez a quarta classe com dificuldade, demonstrando problemas de aprendizagem, etc. Ou seja, o homem teve um crescimento difícil. O meu pai, o décimo primeiro de um magote de 12, que perdeu a mãe aos oito anos de idade, com um pai abusador, que foi criado ao deus-dará pelas irmãs, que fez a primeira classe mal, que sofreu fome, frio e necessidades que ainda hoje, sessenta anos depois lho podemos ler nos olhos, presumo que o meu pai neste jogo dos coitadinhos era bem capaz de ter uma pena ainda mais diminuída. Se calhar deviam dar uma medalha ao meu pai por nunca ter andado a molestar rapazes. Uma ideia. Contactem-me para eu lhes dizer onde ele mora.

Sabemos também que mantém uma relação afectiva estável e equilibrada com a cônjugue e os dois filhos. Aqui o meu pai ia ter a ficha estragada. O que me dá outra ideia: se calhar o facto de terem uma relação conjugal boa, faz os acusados vingarem-se da vida difícil de outras formas. Ou seja, o facto dele ter um bom casamento é um indício da sua culpabilidade! Podem usar este marcador para a decisão experiente em outros casos. Eu sei que isto não é fundamentado, mas estou a entrar no jogo mental dos senhores juízes. Todos podemos jogar o mesmo jogo. A diferença fundamental aqui é que eu escrevo num blogue e os senhores juízes influiem em vidas.

A descrição sobre a vida do arguido antes, durante e a fé para depois continua e quase nos sentimos mal que o homem vá para a cadeia. Deixo uma frase: "No seu quotidiano, o arguido privilegiava os momentos passados em contexto familiar e no exercício da sua actividade profissional, mantendo por isso escassas e pouco aprofundadas relações de amizade e convivência no contexto social. Contudo, beneficiava de uma positiva integração ao nível comunitário, sendo a sua imagem social relativamente favorável." O relativamente deve estar ali porque havia rumores na comunidade de que ele gostava de rapazinhos. Esta frase poderia ter sido escrita doutra forma. Poderia ter-se pegado na mesma base e ter-se escrito a frase de uma forma negativa. A realidade que nos dão no acórdão foi claramente escolhida, dando-nos o arguido numa luz boa. As vítimas simplesmente não existem para lá da descrição dos factos. Não sabemos sobre o seu ambiente familiar, não sabemos como estão a lidar com a agressão, não sabemos se as suas famílias os irão poder apoiar, não sabemos se tinham, têm, terão boas notas na escola, não sabemos como a comunidade os olha ou trata, não sabemos absolutamente nada das consequências dos actos do arguido! Pergunto-me como é que se define a culpa (e portanto a punição) sem saber as consequências dos actos do agressor sobre os rapazes? Ou seja, há uma página sobre o réu na atenuação da culpa e nada sobre as vítimas.

Importante para definir a punição é quem foi ter com quem, onde andaram os pénis, o estado de entumescimento dos ditos, o não ter sido provado coito anal e a idade das vítimas. Para esta frase "Por outro lado, não sendo necessária a coacção para a relevância da agressão ao referido bem jurídico, nos termos sobreditos, a verdade é que é diferente, em termos de ilicitude, ter ou não existido coacção, assim como é de considerar, em sede de determinação concreta da pena, o grau de desenvolvimento do menor, não sendo certamente a mesma coisa praticar algum dos actos inscritos no âmbito de protecção da norma com uma criança de 5,6 ou 7 anos, ou com um jovem de 13 anos, que despertou já para a puberdade, como é o caso dos autos, em que a vítima era capaz de erecção e de actos ligados à sexualidade que dependiam da sua vontade, ainda que se possa dizer que essa vontade é irrelevante para efeitos de caracterização do tipo." não se dá qualquer fundamentação especializada. Resta sobre o senso-comum dos juízes. Estes arrogam-se o conhecimento do grau quantitativo de trauma de abuso sexual. Usando o meu senso-comum, que também o tenho e que sendo eu do ramo das ciências naturais e eles das leis, penso estar ao mesmo nível de crédito, eu diria que há certamente uma diferença qualitativa, mas o grau de afectação dependerá mais da vítima em si. Se calhar o puto de cinco anos até nem sofre nada no momento, pensa que é uma brincadeira, talvez a coisa fique a marinar, talvez um dia tenha um eureca ou reprima. O puto de treze anos que já acordou, pode muito bem sofrer uma disfunção na sua estruturalização sexual. Ele acordou, mas ainda está a desenvolver a sua identidade sexual. A questão aqui é que eu não sei, não me parece óbvio e não entendo este graduar de culpa. Tanto eu como os senhores juízes precisariamos aqui de muito mais que o senso-comum.

Outra frase: "Por último, será necessário atentar em todo o condicionalismo que levou o tribunal de 1.ª instância, com o aval da Relação, a qualificar os diversos actos praticados pelo arguido como um crime continuado - condicionalismo em que avulta o facto de o menor ir comparecendo aos encontros marcados pelo arguido, o que veio a suceder sete vezes. Por sua vez, o arguido foi mantendo o seu comportamento sobre este menor, o que foi sendo propiciado pelo facto de o menor não contar a ninguém o que se ia passando, bem como pelo facto de não ser descoberto. Isto, muito embora, o ofendido FF, como se anota na mesma decisão, aliás de acordo com a matéria de facto, não contasse a ninguém, por vergonha e por receio do arguido, que se limitou a "ordenar" ao ofendido que não contasse o que se passava entre eles." Que se limitou a "ordenar". A luz dos factos é, notem bem, vista da objectiva do acusado. Não há aqui um olhar sobre os sentimentos do rapaz, o tumulto que estaria a registar-se dentro dele. O que interessa realmente é que o acusado não o prendeu, não lhe bateu, não lhe apontou nenhuma picareta. Um rapaz de treze anos. Se é para usar o senso-comum: nenhum dos juízes foi um rapaz de treze anos?

Outra: "Neste condicionalismo, considerando que o dolo, sendo directo, não apresenta especificidades em relação ao dolo requerido pelo tipo, e que a ilicitude é mediana, para usar a expressão usada na decisão da 1.ª instância, corroborada pelo acórdão da Relação, considerando ainda as circunstâncias relativas à personalidade do arguido e que foram destacadas na decisão recorrida a partir do relatório social, reproduzido na sua essência na factualidade provada, a sua primariedade, a sua integração familiar e, de acordo com a própria decisão condenatória, a sua estigmatização no meio em face deste processo, apesar de anteriormente se poder considerar que o arguido estava plenamente integrado socialmente , a pena aplicada mostra-se claramente excessiva e desproporcionada, justificando, assim, a intervenção correctiva deste Supremo Tribunal."

De novo, notem a ausência da vítima e o que se usa para abono do acusado, incluindo a sua actual estigmatização. Desde quando uma pena definida pelos tribunais é relativa a uma já apercebida pena social? Isto é para mim ridículo.

Eu podia continuar, mas estou cansada. Há mais uns pontos de bradar aos céus, mas estou aqui já há um tempo e estou a ficar sem bateria. O que eu gostaria de demarcar é que este não é um caso isolado de fundamentação incompetente, baseada num senso-comum duns senhores juízes. Isto é o estado da justiça e os juízes que temos. Muito cuidado em serem vítimas e já sabem, se forem atacados e se conseguirem defender-se e partirem uns dentes ao perpretante, é bem capaz de serdes acusados de maus-tratos.

P.S.: E se tiverdes mais de catorze anos, já haverá uma página sobre vós no processo, para demonstrar como estáveis mesmo a pedi-las.

P.S.2: Mas vejamos pelo lado positivo: as vitimas eram do sexo masculino. Se fossem do sexo feminino era pior. Era bem capaz de se ter decidido, logo em primeira instância, que não tinha havido crime.