domingo

Expectativas sociais

Eu não sou contra o Rendimento Mínimo Garantido. Concordo plenamente. O que eu acho é que deve existir maior esforço de fiscalização do Estado, para que se limite ao mínimo as injustiças. Não só nisto, mas em tudo. Penso que esta seria a forma de mudar a cultura de chico-espertismo que grassa no país. Há dos meus amigos uma conversa como se o trafulhismo português nos estivesse nos genes. Eu digo-lhes que não, que é um hábito enraizado que nasceu da impunidade e dos funcionários púbicos tratarem da coisa pública como se fosse um caldeirão que todos podemos aproveitar. Eles não são os guardiões, mas os tipos porreiros que abrem as portas à alarvidade. A ocasião faz o ladrão e quando se é honesto fica a sensação azeda de que se está a ser parvo. Na Alemanha as regras são para cumprir e isto não porque os alemães sejam geneticamente honestos, mas porque criaram uma rede de responsabilização. Se falta um cêntimo alguém vai ter que responder. Assim, as ocasiões para ladrão são poucas e sentes que a honestidade vale a pena.

Há o reverso da medalha. O facto dos alemães serem tão pragmáticos produz eficiência, mas pouco calor humano.... Na biblioteca portuguesa quando eu me atrasava na entrega dos livros os senhores telefonavam-me "então que andas a fazer?" e eu lá ia de grande sorriso nos lábios a pedir desculpa. Mas como eu sou uma procrastinadora encartada eles andavam sempre a telefonar-me e eu a desculpar-me com sorrisos. Tinhamos esta relação simpática. Eles nunca perderam a paciência comigo e eu adorava-os por isso. Apesar desta ter sido uma relação feliz para mim, devo dizer que os alemães têm uma aproximação ao problema mais esperta: eu continuo a atrasar-me, mas não tenho telefonemas simpáticos, só umas multas enormes para pagar. Os meus amigos gozam-me pela minha generosa contribuição para a biblioteca de Hamburgo.

Outro caso foi quando me tornei dadora de sangue na Alemanha. Dei várias vezes sangue em Portugal. Quando cheguei ao nível de alemão em que me pude inscrever para dar sangue na Alemanha fi-lo (tens que responder oralmente a questionários e não podes levar tradutor, pois pensa-se que isso poderá levar-te a mentir). Eu tinha ouvido boatos de que pagavam dinheiro pelo sangue na Alemanha e tinha achado isso horrível. Contudo, quando dei sangue pela primeira vez deram-me três euros e eu até achei muito bem, é a ajuda para o transporte, está muito bem. À segunda vez deram-me 23 euros (é a cifra para os "clientes" habituais). Produziu-se uma cena cómica em que eu disse à senhora que se estava a enganar. Ela primeiro temerosa foi ver o registo e a seguir disse-me que não, que era mesmo assim. Saí meia aturdida dos serviços com menos 500 ml de sangue, um pacote de comprimidos de ferro, 23 euros e a perguntar-me que sistema seria melhor. O português que apela à generosidade das pessoas, ao lado bom que existe em nós, dando em troca o sentimento de estarmos a cumprir um acto de ajuda ao próximo; ou o alemão que avalia as pessoas fria e eficientemente, esperando não bondade, mas dever cívico e pagando o que acha mais adequado. Ainda ando a pensar nisso.

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