sexta-feira

O preto, o branco e o cinzento

Os vandalismos e os confrontos da última semana em Paris são daqueles acontecimentos que me calam. Ouço os opinamentos e surpreendo-me com a capacidade de colocar tudo bem arranjadinho numa estrutura a preto e branco. A primeira vez que me dei conta do caso foi 4 dias após o início quando o vi escarrapachado no monitor da minha amiga americana. "Riots in Paris?". Aprochego-me para ler a notícia. "Yes, poor boys." Eu não disse nada porque não sabia nada e porque estou habituada a que ela tenha uma visão muito maniqueísta do mundo. A colega de gabinete dela que tem um filho adolescente mulato acercou-se e disse "At least they speak about it. Here in Germany everyone avoids to recognise the problem of police racism.", "Yes?!?" Eu completamente surpreendida. "The police can arrest someone for 1 day without charge and they do it to non white teenagers. Just because they hang around."

Cinzento, cinzento, cinzento.

A Alemanha tem um aspecto que permite que nunca se atinja o nível virulento de confrontação parisiense. Controla-se a construção de bairros que se possam tornar guetos. Não se consegue discernir à primeira bairros de maioria alemã de bairros de maioria imigrada. Mistura-se. Em Hamburgo, quando se fala de bairros turcos e portugueses é porque são os mais vivos, de pessoas, de bares e restaurantes, de cores (no Lonely Planet, um dos pontos altos de Hamburgo é ir jantar ao bairro português junto ao porto). Não há nos subúrbios desta cidade de 2 milhões e multicultural nada como os banlieues.

Um dia, andava a passear com uma amiga portuguesa (de visita) uma terrinha nos arrabaldes de Hamburgo. Iamos distraídas e quando nos demos conta estávamos num pequeno bairro de imigrantes. Fiquei surpreendida, pois era um aglomerado de casas modestas de um piso e aquelas pessoas viviam ali declaradamente separadas do resto. No campo, as crianças a brincar livres, adolescentes a compôr as bicicletas e as motos à porta. A minha amiga sentiu-se desconfortável, provavelmente a pensar nos acampamentos ciganos. Quando me apercebi também me quis vir embora. O castiço é que eu não tenho medo dos adultos, mas ponham-me uma criança de dez anos à frente e eu começo a transpirar. Isto deriva de várias experiências em que eu fui chingada por crianças ciganas e me atiraram pedras e latas. Desde aí tenho sempre o cuidado de evitar os seus acampamentos.

Cinzento, cinzento, cinzento.

Parece-me absurdo o discurso "coitadinhos destes pobres jovens, só exteriorizam a frustração perante uma sociedade que os marginaliza". Que dizer daqueles que têm vidas difíceis, mas são responsáveis e trabalhadores e até são vizinhos destes pobrezinhos e veêm o carro, que lhes custou muito a pagar, a transformar-se em sucata numa noite de "justa" revolta?

Nem preto nem branco.

Mas também é absurdo considerá-los meros criminosos. Deixar construir bairros horríveis, depósitos de pessoas, sem verde, sem espaço, sem horizontes, anónimos, sem locais para conversar, para poder construir uma comunidade, uma identidade, prisões de cimento. Ignorar, alienar e ficar muito surpreendido quando algo assim acontece e numa de politicamente correcto gritar "Pobrezinhos", ou egoisticamente gritar "Ralé".

Que tal exigir dos nossos governantes medidas preventivas de civilização? É que há pessoas que sabem e estudam estas coisas há décadas. Não são só teorias sociológicas, arquitectónicas ou urbanisticas. Qual a prioridade? Construir estádios de futebol ou providenciar condições para as pessoas viverem como as pessoas devem viver e não em gaiolas de cimento?

Além disso, apavora-me a leniência total. Uma senhora, aqui na Alemanha, contou-me que nos tribunais alemães era prática corrente dar a pena mais leve por crimes de honra. Os magistrados consideravam que era algo cultural. Eu fico fora de mim e grito: cultura não é assassínio! Cultura não é mutilação!

Os direitos humanos são independentes da cultura. Cultura é o falar, o escrever, o pintar, o cantar, a comida, os gestos, é a expressão da humanidade. Não a sua diminuição!

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