quarta-feira

No expresso da meia noite*

Vinda do Brasil - Croácia, no comboio de Berlim, conversei com um moço japonês que vinha a ler um livro que explica O Código Da Vinci do Dan Brown. Dizia-me ele que tinha lido o livro, visto o filme e agora queria perceber o que é verdade e mentira. Eu comecei-me a rir e disse-lhe que ao fim ainda lhe davam um diploma. Ele não se riu, mas também não me senti mal, pois ele era muito simpático de uma maneira muito calma. Eu estava demasiamente cansada para ler, feliz por ter alguém com quem conversar já que o M. andava a conversar com outros croatas.

Tirei da mala o livro The time of our singing, de Richard Powers, que ando a ler e fiz o maior dos elogios, pois é um livro deslumbrante. Já estive várias vezes para escrever sobre ele aqui no blogue, mas é difícil. Tem sido muito emocional, eu como que trago as personagens dentro de mim, quase que de alguma forma as amo, sentindo-lhes a falta antecipada de quando acabar o livro. Nos EUA da luta pelos direitos dos negros, uma mulata, cujo sonho impossível é ser cantora clássica (nos EUA seria negra, porque uma das bases do livro é a questão racial ser vista na dualidade: é-se branco ou é-se preto) e um físico alemão judeu e branco apaixonam-se. A imagem que é dada é a de que o peixe e o pássaro apaixonam-se. Onde podem eles fazer o seu ninho? Esta é a peça central deste livro, que derrama um lirismo pelas páginas que é tão bom que chega a ser obsceno. Os dois casam e têm dois filhos e uma filha. Ambos apaixonados pela música dão aos seus filhos esse mundo de harmonia e fuga. Pretendem criá-los para lá da raça. Cada um deles será a sua própria raça. A luta é constante. Quando os filhos crescem está-se no pico da convulsão (Panteras negras, demonstrações a acabar em violência, Martin Luther King). Aos filhos é-lhes negada a pertença da música que eles aprenderam e amam, porque justificação, é música branca. A filha segue o mesmo raciocínio e é ela própria que a nega. Uma amiga minha, que já leu o livro, disse-me que ele veio pôr em questão a sua ideia de que bastava ter uma família cheia de amor para as pessoas poderem ser completas. Quando se ama um livro a situação extravasa a loucura. Páro a ouvir ópera numa onda de nostalgia que me sucumbe e até quando estou a ver futebol (cheiínho que está de mulatos) pareço ver as personagens a correr para cima e para baixo e esqueço-me do jogo.

Eu e o moço do comboio falamos das armadilhas chamadas livrarias e aí ele disse-me que nesse dia tinha comprado o último livro do Al Gore, An Inconvenient Truth. Perguntei-lhe se podia folhear o livro. Ele acedeu. Achei piada que, depois dos meus últimos postes, fosse ali com aquele estranho que o livro me viesse parar às mãos. O livro é figuras, fotografias e frases curtas e directas. É um prazer para os olhos e pareceu-me esclarecedor da forma mais simples possível. Não vi erros, mas não o li todo. Tem alguns textos mais longos e li um, mas não era sobre o Aquecimento Global ou as Alterações Climáticas. Era sobre a irmã dele. Sobre ela ter morrido com cancro dos pulmões devido a ser fumadora desde os treze anos. Ele pensa que se não fosse a campanha das empresas de tabaco contra a investigação da altura, ridicularizando, minimizando, relativizando a ciência feita, as pessoas poderiam ter visto mais cedo os riscos que corriam, incluindo a irmã dele. Ele compara a estratégia das companhias tabaqueiras com a estratégia hoje em relação à investigação do Aquecimento Global e das Alterações Climáticas, adiando a consciencialização do problema. Esta associação já a vi várias vezes, mas esta é a mais sentida e emocional. Estou a pensar comprar o livro e pareceu-me uma boa sugestão para as pessoas em geral que podem ler o essencial, sem linguagem especializada e sem ser aos bocados desgarrados.

Eu e o moço japonês combinamos ver juntos o jogo Croácia - Japão no Domingo. O M. também vem.

* Título dado para efeito. Foi verdadeiramente o expresso da 01:06.

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De Tom Toles, Washington Post, aqui.

Clicar sobre a figura para aumentar de tamanho.
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Quanto ao Brasil - Croácia: acabei por passar o jogo a torcer pela Croácia. Eu estava admirada comigo própria, mas os brasileiros não me deram razões para mudar o meu sangue. Foi infeliz que eu não tivesse tido a oportunidade de ver a magia canarinha ao vivo, mas, pelo menos, o M. está muito satisfeito por eu afinal me ter mostrado uma amiga fiel. Adorei o novo Estádio de Berlim, mas eu, nestas coisas de arquitectura, adoro a simplicidade e a junção do antigo com o novo. Para quem não sabe, este foi o Estádio Olímpico em que Hitler quis mostrar a superioridade da raça ariana e acabou por ser rasteirado pelo Jesse Owens.

Hoje no El País: ao escreverem sobre o jogo Brasil - Croácia descrevem o que é escrito na imprensa lusa e na imprensa croata. Nem uma menção à imprensa brasileira. Não é esquisito?

4 comentários:

Helena Araújo disse...

Fiquei cheia de vontade de ler esses livros!

Essa da separação racial lembra-me uma aula de inglês (para estrangeiros) em San Francisco: a propósito do censo que estava a decorrer nesse momento, o professor "ensinou-nos" a nossa raça. Olhou para mim e disse: black. Black, eu?!
Era um brincalhão - tinha a sala cheia de gente que estava lá para se divertir e deliciar com a sua inteligência e cultura.
Mas deixou o recado: há brancos e brancos.
E deixou a sensação de desconforto: como será nascer com a "cor errada"?

Numa escola brasileira, deram a uma menina, filha de pai japonês e mãe italiana, um formulário onde havia várias raças, para ela pôr uma cruz. Que fazer, neste caso? Pôs a cruz entre os quadradinhos.
É por aí...

daniel disse...

Abrunho,
a resposta à tua pergunta lá no meu blogue é
http://www.radioblogclub.com/

abrunho disse...

Daniel,

és um querido de me vires aqui dizer-mo. Contudo, estou com problemas. O firefox empanca quando começo a clicar na página. Nao sei bem como resolver isto.

abrunho disse...

Resolvido.