segunda-feira

Eutanásia

Porque não posso decidir sobre o sentido da minha dor e do meu sofrimento? Porque não teria o direito de os considerar inúteis, se não acredito na sua vocação redentora? Porque não se aceita que alguém considere "estar vivo" diferente de "ter uma vida"? Porque se chega ao ponto de considerar essa caricatura de vida, só possível a custo dos avanços tecnológicos, como vida "natural" que deve seguir o seu curso..., até ao fim "natural"?

16 comentários:

Anónimo disse...

Por um lado, concordo inteiramente contigo, ou com o murcom.

Por outro lado, num contexto de pirâmide etária invertida e falta de meios financeiros para pagar os cuidados deste doentes e da terceira idade (ambos cada vez mais caros), temo que estes, e as suas famílias, sejam sujeitos a uma pressão insuportável. Nem é preciso dizer-lhes, eles próprios terão vergonha de continuar a existir e a exaurir os limitados recursos do sistema social.

Parece-me que a Igreja tem uma mensagem muito importante: a solução simples é desligar a máquina, a solução difícil é tratar as pessoas com amor - cuidado com os cálculos de rentabilidade económica quando estão em causa vidas humanas. A dor e o sofrimento são muito mais suportáveis se o doente está envolvido por uma rede de amor que dá sentido à sua vida.

Há algumas semanas passou um debate na televisão alemã, em que um gajo muito interessante e com grande sentido de humor contou a história de um acidente que teve, do estado miserável em que ficou, do longo e dispendioso processo de recuperação, e acrescentou: "se o acidente tivesse ocorrido na Inglaterra, os médicos não se davam ao trabalho de me salvar, porque eu já não reunia as condições necessárias para o fazer."

Também conheço o caso de uma mulher cuja mãe passou 10 anos em coma vigilante (espero que seja este o nome certo). A princípio, a filha ia visitar a mãe várias vezes por dia, fazia-lhe ginástica, falava com ela. Com o passar dos anos, deu-se conta que deixara de ter uma vida sua, porque passava todo o tempo livre com a mãe - cujas hipóteses de recuperação eram desconhecidas. Acabou por decidir desligar a máquina. Como é que se vive com esta decisão, e a dúvida de que talvez a mãe fosse acordar no dia seguinte?

Também conheço a história da mulher que decidiu ir a Zurique para fazer a eutanásia. Não queria assistir ao seu próprio envelhecimento, não queria que a filha lhe mudasse fraldas. E a filha, ao seu lado, chorava. Para ela, não era problema algum ajudar a mãe, mudar-lhe as fraldas; e depois, dizia ela, de que falariam durante as 10 h de viagem até Zurique?
Imaginas-te a levar a tua mãe à eutanásia, só porque ela não quer que a sua velhice seja um peso para ti?

abrunho disse...

O que eu penso é que há vários problemas relacionados com um assunto e mistura-se tudo e dá-se conforme o que se pretende demonstrar. É um prisma e mostra-se a face que se quer conforme.

Isto é assim em qualquer argumentaçao: a eutanásia, o casamento, a adopçao, o aborto.

Isto parece-me uma forma de paralisia. Nunca se melhora nada porque se foca o que pode piorar. Pode, ainda por cima pode. Porque nunca se explica, ou pelo menos eu nao vejo isso, porque é que é impossível pensar em resolver um problema, sem piorar outro.

Nao será possível que as pessoas possam decidir a sua morte, sem que isso implique que o Estado e a Sociedade empurrem apressadamente alguém para a morte? Haverá sempre excepçoes (há sempre), sempre casos mal resolvidos (há sempre), sempre injustiças (há sempre). Mas haverá mais que agora?

O que me parece mais importante no texto que cito do murcon é a última frase: com a medicina actual e a futura vivemos vidas nao naturalmente longas, que podem-se tornar dolorosas. Isto significa que a escolha de morrer passará a ser nossa. As pessoas convivem ainda mal com isto, principalmente numa sociedade em que a morte passou de algo natural, para nao natural. A morte é natural e faz parte da vida. O que nao é natural é viver 'a espera da morte no sofrimento agarrado a máquinas ou empanturrado de medicamentos. O retorno da morte para a sua naturalidade falta. Um dia uma filha despedia-se da mae no seu leito, agora despede-se num comboio. É pior? Nao me parece. Pior é a mae sentir-se a morrer em vida. Que ela tenha a possibilidade de escolher e que o que tenhamos de fazer é impor todas as seguranças de que o possa fazer sem pressoes. E' essa a discussao.

O tal senhor todo partido que salvaram, por exemplo, devia-se fazer tudo para o salvar. Só se dá a eutanásia a casos perdidos em que a vida é extremamente limitada pelo sofrimento a pessoas que assim o decidiram dentro das suas faculdades e sem pressoes. Ou no caso de pessoas comatosas quando há muito poucas hipóteses de recuperamento e a família assim o decida.

Eu sei que queres dar o contra. Mas há contras em tudo e para mim eu coloco-me no campo que mais liberdades dá para que as pessoas escolham a sua vida e morte. É sempre esta a minha pedra-toque.

cristina disse...

O meu primeiro pensamento ia um bocado ao encontro do da helena: as pressões. Mas não pude deixar de partilhar um pouco da tua opinião:

«Nunca se melhora nada porque se foca o que pode piorar.[...] Haverá sempre excepçoes (há sempre), sempre casos mal resolvidos (há sempre), sempre injustiças (há sempre). Mas haverá mais que agora?»

Mas, trazendo a ignorância - a minha! =) - ao de cima, como se avalia?

«Só se dá a eutanásia a casos perdidos em que a vida é extremamente limitada pelo sofrimento a pessoas que assim o decidiram dentro das suas faculdades e sem pressoes. Ou no caso de pessoas comatosas quando há muito poucas hipóteses de recuperamento e a família assim o decida.»

Como se "decreta" que a pessoa (ou a família) pode optar pela morte, sem que seja suicídio (ou homicídio)?

abrunho disse...

Eu quando dou a minha definição sou obviamente vaga. Eu não sou médica. O corpo médico é a primeira linha de discussão, pois são eles que têm o conhecimento para definir a situação de saúde do paciente, para definir o futuro daquela pessoa com base no conhecimento que eles têm melhor que todos os envolvidos. Além disso, será o corpo médico a analisar dentro da sua estrutura a prática da eutanásia. Mais que todos, esta discussao é deles, dos limites das possibilidades tecnológicas, quando parar, quando é que o espírito tem mais a salvar que o corpo, etc. Seguidamente, haverá os outros intervenientes da sociedade, até nos congregar a todos nós.

Imagino a mudança bipolar, dos médicos que convivem com situações reais a perguntarem-se do melhor e de pessoas a quererem decidir a sua morte.

Eu aqui neste blogue não consigo definir regras limpas sobre um universo que conheço pouco e quando cada caso é único. Além disso, não é regras limpas que defendo, mas que as regras limpas de hoje deixem de ser tão armadas a betão.

abrunho disse...

Telefonaram-me da Agência dos Erros Ortográficos:

-> é Recuperaçao nao Recuperamento.

Anónimo disse...

Abrunho,

Insisto: muitas das pessoas que pedem a eutanásia são vítimas da sua solidão, ou do seu pudor (orgulho?) em não se tornarem um peso para os outros - e é aí que temos de estar vigilantes.
O problema da comunicação e do isolamento - as relações - é uma faceta da questão.

Se lês francês, tens aqui um texto muito bom sobre a eutanásia e a importância de não abrir mão da proibição de matar: http://www.cairn.be/article.php?ID_REVUE=ETU&ID_NUMPUBLIE=ETU_984&ID_ARTICLE=ETU_984_0437
Parece-me que explica a posição da Igreja - que não tem nada a ver com puro masoquismo ou sadismo, como o texto do Murcon dava a entender.

Por outro lado, entendo a tua aversão a máquinas que prolongam a vida quando ela naturalmente se acabaria. Havia um jesuíta francês, o Pde. Dainville, que combinou com o médico que o tratava da leucemia em fase final que não adoptariam nenhum tratamento pesado para o fazerem sobreviver. Na ausência deste médico, um outro enviou-o para os cuidados intensivos, ligou-o a todo o tipo de máquinas. Pouco antes de cair em coma, protestou: "estão a privar-me da minha morte".

Para complicar, acrescento um caso sem máquinas: crianças que nascem com o cérebro muito afectado, e não têm qualquer hipótese de aprender a sentar-se ou a andar, quanto mais comunicar. Já que não têm qualquer perspectiva de melhorar, deve-se cortar a sonda que as alimenta, e aproveitar delas o coração, os pulmões, os olhos, os rins - e melhorar a vida de outras crianças com mais possibilidades de ter uma vida normal?
Porque motivo se insiste em manter vivo aquele "arremedo" de ser humano?
Os familiares de deficientes profundos saberão explicar-nos porquê - e mais: saberão dizer-nos que este tipo de discussão os enche de terror que a sociedade não trate os seus deficientes.

Às vezes falo com amigos médicos sobre isso. Na Alemanha é difícil, porque tudo o que cheire a eutanásia de deficientes lembra os antigos fantasmas. Além disso, a resposta que me dão é "o juramento de Hipócrates não me permite tirar vida."
Mesmo a discussão das hipóteses de recuperação é difícil. Perante muitos casos de recuperação, os médicos dizem que foi um milagre - a ciência não tem como explicar. (Conheces o caso do gajo que passou anos em coma, e de repente acordou para pedir uma Pepsi?)

Perante tudo isto, proponho que se permita a eutanásia em casos limite, com a aprovação de uma comissão de ética (de modo a deixar bem claro que a sociedade repudia a morte assistida, mas em certos casos, pesando tudo o que está em causa, a tolera).

E para complicar um pouco mais, falemos do suicídio. A partir do momento em que aceitamos que uma pessoa pode decidir livremente morrer, como é que nos vamos comportar?
Uma vez um suicida atirou-se para debaixo do comboio onde eu ia. Ficámos horas parados, a ver a condutora do comboio em estado de choque (completamente à rasca!), e os médicos a tentar salvar o homem, de gatas debaixo do comboio.
O homem, que provavelmente tinha um problema gravíssimo, ficou com dois: salvou-se, mas perdeu as pernas. Os médicos deviam ter respeitado a sua vontade de querer morrer? A maquinista não devia ter travado?

abrunho disse...

Concordo com o que escreves.

Fora dos casos limite de que falamos para a eutanásia, o suicídio é uma situaçao pessoal e individual. Como familiares e amigos fazemos o melhor que pudermos se o soubermos e pudermos para que a pessoa nao desista. Mas nao me parece necessário que cada um de nós ou a sociedade tenham que tomar uma posiçao de aceitaçao. Eu também considero que é perigoso colocarmos em questao a proibiçao de matar. Eu só coloco isto em causa na eutanásia porque penso que fazer uma pessoa viver artificialmente e em sofrimento por métodos tecnológicos avançados é uma tortura e logo nao é humano. Agora uma pessoa saudável, se quer terminar, se o quer realmente, tem de o fazer por ela. Porque haveriamos de nos imiscuir na concretizaçao prática dos seus desejos?

No caso concreto dos suicidas que sao socorridos: para bem da nossa sociedade, para bem das nossas almas tenta-se sempre salvar. É má sorte para o suicida, mas a soluçao é só uma: planearem bem a coisa. Eu costumava dizer que se me suicidasse me postaria na borda do mais alto edifício, tomava veneno e dava um tiro nos miolos. Para segurança total. :-)

Bem, vou ler o texto que propuseste.

cristina disse...

abrunho:

Deixa cá ver se percebi: tu enquadras o suicídio numa espécie de quadro liberal, é? Quem quiser matar que se mate, desde que não incomode! Ou melhor, a gente até tenta fazê-lo não desistir da vida, mas se ele mesmo assim quiser, não há nada a fazer?! Não o podemos/devemos proibir, é isso?!

abrunho disse...

Proibir o suicídio? E se a pessoa sobrevive? Mete-la na prisao?

Helena Araújo disse...

Ai, se a pessoa sobrevive ao suicídio, o mínimo que merece é pena de morte!
;-)

Há um livro que talvez te interesse: História da Morte no Ocidente desde a Idade Média, de Philipe Ariès. Como foi feito a partir de vários artigos, é um bocado repetitivo, mas muito interessante (juro que não é como o Bullshit). Conta como a morte passou de fenómeno natural a falha da medicina. E como os médicos se irritam com os doentes que não cooperam e fazem questão de aceitar a morte...
Talvez haja artigos dele na internet (o livro é de 1975).

cristina disse...

Na prisão não, mas numa clínica ou algo do género...

Concordando ou não, confesso que achava que o suicídio era crime... Perante o vosso espanto fui procurar um bocadinho... Pois não é...

Sociedade Portuguesa de Suicidologia

Mas então se não é crime, como reage a sociedade a um suicídio falhado, se o suicida não quiser ser ajudado?! De maneira nenhuma, é isso? Quer-se matar, que se mate, está no seu direito - pois, porque, para além de descobrir que não é um crime, descobri que é um direito!!! Isto é muita informação para eu processar de uma só vez...

Helena Araújo disse...

Cristina,
também acho muito complicado - sobretudo a frustração de não ter sido capaz de ajudar.
Parece-me perigoso que se ofereça o suicídio como um direito, ou uma possibilidade natural. Até que ponto é que as pessoas afectivamente perturbadas não se deixam seduzir por essa ideia?
Por outro lado, castigar o suicida não é a melhor solução. Ele precisa de ajuda - e há casos em que essa ajuda é impossível.

Do site que enviaste retirei esta parte:
"O actual momento do estado da arte no campo dos comportamentos suicidários e a evidência de um número crescente de para-suicídios/tentativas de suicídio com que nos confrontamos diariamente na nossa pratica clínica e que representarão porventura apenas uma pequena parte do todo, exige de todos nós uma reflexão profunda sobre as suas verdadeiras razões e que nos questionemos sobre as dimensões psicológicas e sociais que estarão por detrás da emergência desta nova realidade."

abrunho disse...

O suicídio é uma nova realidade?

cristina disse...

helena:
As clínicas, as terapias, os aconselhamentos - whatever! - não são castigos, são - devem ser -, em último caso, inevitabilidades. Assumir o suicídio como um direito indiscutível continua a parecer-me inconcebível numa sociedade comunitária...

abrunho:
«nova»???!!!

Anónimo disse...

O que é novo, segundo o texto, não é o suicídio em si, mas o número crescente de para-suicídios/tentativas de suicídio.

Será que o número está realmente a crescer, ou agora registam-se os factos que dantes se ignoravam?
Se o número está a crescer realmente, então temos de ter muito cuidado, como diz a Cristina, com a banalização da ideia do direito à morte, a aceitação do suicídio como uma solução natural.

abrunho disse...

Interessantes discussoes por aqui. Obrigado.

Helena,

naquele artigo em frances o senhor faz enfase ao nosso instinto como base moral. Eu lembrei-me de um artigo de Peter Singer sobre o instinto humano e a sua validade para tomar decisoes morais: http://www.project-syndicate.org/commentary/singer21 .