sexta-feira
No fio da navalha
Quando fui a Portugal ouvi várias pessoas a dizerem que a lei actual já basta, que é só preciso faze-la funcionar. Eu concordo. Os casos que me parecem justificar moralmente a prática do aborto parecem-me incluídos nas tais excepçoes da lei. Só que nao funciona e há sempre histórias novas, nomeadamente no que concerne a violaçoes, que entre papelinhos para trás e para a frente, o prazo ultrapassa-se e nao se faz o aborto. Eu nao sei se as pessoas que andam no pingue-pongue burocrático o fazem de propósito. Nao sei, mas se calhar encostam-se. E atirem-me uma pedra se faz favor, mas tenho a impressao que os médicos ainda estao no mundo da quantidade e nao da qualidade. A vida é conseguir respirar, o resto nao lhes interessa nada. Estou a generalizar uma cultura do ser-se médico, que acho bem que mude. Uma vez soube de uma história de uma toxicodependente que também era extremamente fértil. As assistentes sociais a receber todos os anos um rebento resolveram pedir a esterilizaçao da senhora. Os médicos responderam que nao podiam pois ela era demasiadamente nova. Que ela nao conseguisse controlar a sua capacidade produtiva, que ela nao conseguisse criar os filhos, que ela nao se dispusesse a dá-los para adopçao ou que o próprio sistema jurídico de protecçao aos menores nao funcione pelos menores ou que os menores estivessem a ser empilhados em instituiçoes sociais nao lhes interessou mesmo nada. É por estas e por outras que eu sou pró-escolha. O meu pró-escolha é pragmático. A dependencia de um sistema destes (médico, jurídico, social) para tomar decisoes nao se justifica quando o bónus do erro é principalmente, nomeadamente, praticamente privado. Prefiro que seja dado o poder de escolha aos indivíduos que a uma estrutura destas. Penso que as injustiças serao menores. O máximo possível das vidas de cada um deve ser posto sobre a sua alçada e até, neste caso 10 semanas, para mim, justifica-se dar prioridade aos indivíduos que 'a potencialidade de indivíduo. Isto é o fio da navalha. Todo o pensar da IVG, para mim, é no fio da navalha.
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
12 comentários:
«a lei actual já basta, que é só preciso faze-la funcionar» - Ora aí está uma coisa que eu gostava de perceber (de preferência antes de Fevereiro...): o que diz a lei actual? e, já agora, o que é que nela não funciona?
A LEI ACTUAL DIZ:
CAPÍTULO II
Dos crimes contra a vida intra-uterina
Artigo 140.º
Aborto
1 - Quem, por qualquer meio e sem consentimento da mulher grávida, a fizer abortar é punido com pena de prisão de 2 a 8 anos.
2 - Quem, por qualquer meio e com consentimento da mulher grávida, a fizer abortar é punido com pena de prisão até 3 anos.
3 - A mulher grávida que der consentimento ao aborto praticado por terceiro, ou que, por facto próprio ou alheio, se fizer abortar, é punida com pena de prisão até 3 anos.
Artigo 141.º
Aborto agravado
1 - Quando do aborto ou dos meios empregados resultar a morte ou uma ofensa à integridade física grave da mulher grávida, os limites da pena aplicável àquele que a fizer abortar são aumentados de um terço.
2 - A agravação é igualmente aplicável ao agente que se dedicar habitualmente à prática de aborto punível nos termos dos n.os 1 ou 2 do artigo anterior ou o realizar com intenção lucrativa.
Artigo 142.º
Interrupção da gravidez não punível
1 - Não é punível a interrupção da gravidez efectuada por médico, ou sob a sua direcção, em estabelecimento de saúde oficial ou oficialmente reconhecido e com o consentimento da mulher grávida, quando, segundo o estado dos conhecimentos e da experiência da medicina:
a) Constituir o único meio de remover perigo de morte ou de grave e irreversível lesão para o corpo ou para a saúde física ou psíquica da mulher grávida;
b) Se mostrar indicada para evitar perigo de morte ou de grave e duradoura lesão para o corpo ou para a saúde física ou psíquica da mulher grávida e for realizada nas primeiras 12 semanas de gravidez;
c) Houver seguros motivos para prever que o nascituro virá a sofrer, de forma incurável, de doença grave ou malformação congénita, e for realizada nas primeiras 24 semanas de gravidez, comprovadas ecograficamente ou por outro meio adequado de acordo com as leges artis, excepcionando-se as situações de fetos inviáveis, caso em que a interrupção poderá ser praticada a todo o tempo;
d) A gravidez tenha resultado de crime contra a liberdade e autodeterminação sexual e a interrupção for realizada nas primeiras 16 semanas.
2 - A verificação das circunstâncias que tornam não punível a interrupção da gravidez é certificada em atestado médico, escrito e assinado antes da intervenção por médico diferente daquele por quem, ou sob cuja direcção, a interrupção é realizada.
3 - O consentimento é prestado:
a) Em documento assinado pela mulher grávida ou a seu rogo e, sempre que possível, com a antecedência mínima de 3 dias relativamente à data da intervenção; ou
b) No caso de a mulher grávida ser menor de 16 anos ou psiquicamente incapaz, respectiva e sucessivamente, conforme os casos, pelo representante legal, por ascendente ou descendente ou, na sua falta, por quaisquer parentes da linha colateral.
4 - Se não for possível obter o consentimento nos termos do número anterior e a efectivação da interrupção da gravidez se revestir de urgência, o médico decide em consciência face à situação, socorrendo-se, sempre que possível, do parecer de outro ou outros médicos.
Contém as alterações introduzidas pelos seguintes diplomas:
- Lei n.º 90/97, de 30 de Julho
Consultar versões anteriores deste artigo:
- 1ª versão: DL n.º 48/95, de 15 de Março
O que nao funciona na lei sao os seus intervenientes e estes penso que sao nomeadamente os médicos e o sistema hospitalar. A obtençao dos documentos que provem a nao punibilidade: que existe perigo de morte, que existiu sexo forçado, que existe mal-formaçao, que existe médico para proceder 'a intervençao, que existe hospital oficialmente bla bla bla, que, que, que... e nisto os prazos... que que que
Eu tenho a impressao que a Fernanda Cancio andou a investigar isto. Até seria bom contactá-la e perguntar-lhe se poderia postar sobre isto.
Muito agradecida - a sério! Confesso que não me esforcei muito por procurar, mas já há muito tempo que queria saber isto.
E já que estou numa de esperar que os outros me digam aquilo que eu devia procurar... =) posso tentar mais uma questão: o que é que a nova lei (a ser aprovada) vai mudar?...
Durante as primeiras 10 semanas, deixa de ser preciso o atestado médico e basta o consentimento da mulher (ou dos seus representantes legais), é isso? O que resulta no desaparecimento (legal) de todas as condições do n.1 do art.142 e, obviamente, dos n. 2 e 3 do art.140, é isso? E para além das 10 semanas, mantem-se o quadro jurídico actual, é isso?
Até às 10 semanas a mulher passa a poder abortar, simplesmente, porque sim - eu sei que essa decisão não é tomada de ânimo leve, mas é só para eu tentar perceber as diferenças... Depois das 10 semanas, as condições para um aborto legal são as que já se verificam agora, mas até às 10 semanas, basta a mulher assinar um papel... É isso?
[Desculpa lá o questionário da minha ignorância...]
Eu nao sou jurista, mas é por aí. É pena que o governo nao tivesse informado exactamente, mas cá pra mim ainda nem pensaram nisso. A violaçao, p.ex., provavelmente nao precisará de mais de 10 semanas, já que o prazo anterior era devido aos serviços de saúde e ao seu passo de caracol e exigencias, algumas até fora da lei (esta pede atestado médico e há hospitais que requeriam a queixa-crime e a maior parte impunha que a decisao fosse realizada por uma comissao, que na lei só é exigida para a definiçao da aceitabilidade do aborto em caso de malformaçao). Até 'as 10 semanas é a decisao da mulher que conta. Essa de nao ser feita com animo leve, nao estou tao segura. Acho que há gente muito irresponsavel. Só que a existencia de gente besta nao é novidade e há casos em que temos que viver com esse facto (compreendo que para quem considera o embriao pessoa esta seja impossível de engolir). Há pessoas bestas a conduzir e isso nao significa que vamos proibir a conducao a todos (talvez se conduzir nao fosse uma necessidade tao vital, mas prontos, cá vai a analogia). E mesmo que eu quisesse castigar gente besta faze-los pais parece-me um contra-senso. Pessoalmente, o melhor é deixá-lo 'a consciencia de cada um e ter fé nos bons sentimentos e responsabilidade da maioria, porque o cenário contrário, que é o de abortos clandestinos, da má aplicaçao da lei actual pelos serviços de saúde e a criminalizaçao é incomportável.
«É pena que o governo nao tivesse informado exactamente, mas cá pra mim ainda nem pensaram nisso.»
- Mas, ainda que ninguém conheça - pelo menos eu! - não é suposto estarmos a referendar uma proposta concreta? Ou estamos só a determinar o espírito da coisa?
«Há pessoas bestas a conduzir e isso nao significa que vamos proibir a conducao a todos.»
- Percebo o que queres dizer mas não é um exemplo feliz; não é a mesma situação! As «bestas» que conduzem fazem-no contra a lei e as «bestas» que abortarem só porque não tinham nada mais interessante para fazer naquele dia, fá-lo-ão ao abrigo da lei.
Já agora: e o pai? não é tido nem achado neste processo, pois não? Eu sei que em muitos casos não se sabe quem é o pai ou ele não se responsabiliza, mas há-de haver casos em que o senhor até pode ser interessado e até pode querer criar o filho sozinho (se necessário)... Não haverá nada que proteja esta espécime (de pai presente e preocupado)? Ele corre o risco de num dia saber que vai ser pai e no outro saber que afinal não, só porque a senhora decidiu que não queria engordar?! - eu não estou a dizer que isto aconteça, mas (teoricamente) pode acontecer, certo?
[Mais uma vez, desculpa lá o questionário, mas estou a aproveitar que tenho retorno para ir desbobinando as dúvidas... =)]
[Podes ir parando de pedir desculpa, que eu é nestes diálogos que mais gozo tenho na bloga.]
A proposta é concreta, mas a forma como os artigos vao ser trabalhados já se pensou? A mim o Joao Alvim (o bloguista do Timoneiro Perdido) disse-me que é só o artigo 142 que vai ser modificado, mas eu olho e na minha maneira de ser compostinha nao funciona. Devia começar-se pela frase do referendo, segue-se que após 10 semanas ainda há estas e estas excepçoes e acaba-se com as penas fora deste enquadramento. É uma questao de linguagem e ordem, mas em legislaçao até uma virgula interessa.
O que eu quis dizer na minha analogia é que devemos tentar que o justo nao sofra pelo pecador.
Relativamente ao homem é de novo um caso em que ainda que possamos ter simpatia no caso em que as intençoes dele sao boas, o reverso do que significaria assegurar-lhe este direito seria demasiadamente mau. Além que os homens tem que começar a perceber que eles tambem tem de ter responsabilidades. Se a sua relaçao com uma mulher nao é estável nao podem estar 'a espera de que ela esteja disponível para lhes servir de incubadora porque afinal eles até queriam uma criança. Se a relaçao é estável a decisao deverá ser de ambos, mas a intromissao do Estado em caso de disputa nao é possível nem desejável.
Os homens e as mulheres estao, face 'a lei, com poderes diferentes? É verdade, mas se tem que culpar alguém é a Natureza. Somos diferentes e se a mulher teve que lidar com as desvantagens da sua posiçao o homem tambem tem de lidar com as desvantagens dele.
Quando uma mulher quer filhos tem que escolher o companheiro com cuidado. O homem tem que fazer o mesmo.
A questao que tem de ser pensada relativamente 'a posicao do homem é que, agora sendo a mulher obrigada por lei a conceber, o homem era obrigado a comparticipar monetariamente na educaçao da criança. {Nao sei se isto realmente funciona, mas adiante}
Se a lei for mudada e o homem nao quiser a criança? Havendo a alternativa do aborto, poderá ele retirar-se das responsabilidades monetárias da paternidade?
«Os homens e as mulheres estao, face 'a lei, com poderes diferentes? É verdade, mas se tem que culpar alguém é a Natureza.»
- Não me parece que isso tenha algum tipo de validade argumentativa. Eu sei - acredito! - que não é por aí que queres ir, mas pensamentos destes são a base de todo o tipo de discriminação.
«Quando uma mulher quer filhos tem que escolher o companheiro com cuidado. O homem tem que fazer o mesmo.»
- Isso é demagogia! Também não vale como argumento capaz...
«Se a lei for mudada e o homem nao quiser a criança? Havendo a alternativa do aborto, poderá ele retirar-se das responsabilidades monetárias da paternidade?»
- Sinceramente... não me parece totalmente descabido... Pode não ser muito razoável, mas não é totalmente descabido... Por outro lado, (se não houver riscos) ninguém deve poder ser obrigado a abortar... Ui, que confusão!... Tenho de pensar melhor nisso...
Lembrei-me deste nossa troca de ideias quando li num outro sítio [http://horas-perdidas.blogspot.com/]:
«decisão a meias e culpa por inteiro, que nunca vi nenhum gajo ser julgado por levar a sua mulher a fazer um aborto.»
- Atenuou em mim, realmente, algum peso de consciência relativamente ao "esquecimento" do pai nestas discussões...
Deixa cá ver, quando escrevo que o homem e a mulher estao em posiçoes diferentes relativamente ao acto de procriar estou a assentar as bases da discriminaçao (hás-de-me apresentar um homem grávido, que eu nunca vi), mas quando digo que o homem e a mulher devem ambos cuidar bem de quem é a pessoa que os poderá acompanhar no processo de querer e ter filhos, algo que implica uma partilha duradoura de vidas, estou a ser demagógica.
O primeiro parece-me tao claro, tao impossível de contra-argumentar que estou até de boca aberta.
Cristina, prepara-te: o homem e a mulher sao diferentes. Nao queria ser eu a dar-te esta notícia, nem pensei que ainda nao soubesses, mas sao.
O que obnubila feministas e o oposto de feministas (nao lhes sei o nome) é entrincheirarem-se exactamente em demagogias e nao verificarem se essas diferenças importam ou nao para a questao em apreço.
No caso da IVG sao inultrapassáveis e negá-las é ser cego. A mulher fica grávida, o homem nao. Nao há volta a dar-lhe. A lei tem que ser aplicável. Uma lei que é só um texto moralizante, um desejo de um mundo perfeito, uma realidade ideal nao deve existir.
Quanto ao pagamento monetário da responsabilidade parental parece-me descabido que o homem nao seja responsabilizado, porque há uma criança. Esta criança é um indivíduo independente da mae, ainda que a sua existencia se deva 'a mae. É só a sua existencia que deve interessar ao Estado e é a pensar na criança que o homem é chamado 'a sua responsabilidade. A responsabilidade do homem como pai nao é para com a mae, mas para com o filho. É isso que o Estado deve ter em conta. O Estado nao é uma entidade justiceira. O Estado é uma entidade que preserva os direitos, passíveis de serem preservados.
Agradecida pelo notícia =) Um novo mundo abriu-se agora diante de mim =)
Mas eu não estava a pôr em causa o facto - que, obviamente, sei que é um facto! - de sermos diferentes. Eu não estava a tentar contra-argumentar o que quer que fosse... O que eu estava a (tentar!) dizer é que (genericamente) o facto de a natureza nos fazer diferentes uns dos outros não deve valer POR SI SÓ como argumento.
«entrincheirarem-se exactamente em demagogias e nao verificarem se essas diferenças importam ou nao para a questao em apreço.»
- Sim, era isso mesmo que faltava acrescentar! Verificar que ESTAS diferenças importam para ESTA questão em apreço. Aquele teu «se tem que culpar alguém é a Natureza» parecia querer demitir-se desta verificação.
Quanto à responsabilidade do pai pela criança, concordo com o que dizes. Mas o que me baralha aqui é o facto de a mãe poder (vir a) escolher não ter a criança e o pai não. Ou seja é o reverso da minha questão de há uns tempos...
Já sei que somos diferentes e que neste caso isso tem consequências importantes. Sei também que no meio de tudo isto, esta questão foge ao cerne da problema... Mas não é por isso que a resposta se simplifica...
Eu, em princípio, concordaria que uma mulher teria de ter a permissao do homem. O problema é a praticabilidade disto.
Enviar um comentário