quarta-feira

4 da manhã e às 11 curtas

É aquilo que não se pensa até se experimentar. Por agora, em Hamburgo, amanhece às 4 da manhã. Isto dá cabo de uma noite na farra. Nunca tinham pensado nisso, pois não? Eu também não, até ver o céu a aclarar e eu com a Maria Joana numa mão e a bionade* na outra e a noite, fucking hell, só agora começou ou é impressão minha? Deixamos a rua e dirigimo-nos para algum bar-discoteca. O seguimento é entre portas que estamos transformados em vampiros. Quando sairmos havemos de pôr os óculos escuros, se nos lembramos de os trazer, descer até ao Fishmarkt e beber um cappuccino ou outra proprocionalidade de café e leite, que isto pra quem tem a boca feita em papel tanto faz, algo quente sabe sempre bem, desde que seja quente. Depois, se conseguirmos não adormecer no autocarro e acordar nos arrabaldes, havemos de chegar rápido e incólumes a casa e com sorte até nos deitamos depois de lavar os dentes. Com sorte e com algum juízo.

Este sábado estivemos a jogar um jogo de sociedade até tarde, pelo que quando emergimos da boca do metro o céu já se tingia. O rio de gente corria ao contrário. Ando sempre ao contrário? Localizamos os outros companheiros por telemóvel e dirigimo-nos para o centro da coolness: pudel. Mais tarde, já no Fishmarkt, um chico-esperto debitou a ideia de apanharmos a linha 62 do barco e fazer a volta. Normalmente teria dito que não, mas às 11h havia uma sessão única de curtas portuguesas no cinema Abaton. Não estava nada à espera de conseguir assistir numa hora tão matutina de um Domingo, mas já eram 8h e se eu esticasse a noite... O sol estava amigo, na proa o vento cortava, Blankenese do lado direito, zona rica, à esquerda o porto de contentores. No retorno, rendida ao convés pelo frio, vi-me rodeada de famílias bem dormidas. A menina de lenço comia compenetrada a sandes, as crianças eram bem comportadas, os pais eram feios, os homens gordos, as mulheres magras, os louros envelhecem mal. Os meus companheiros dormitavam de caras esparramadas sobre os braços em cruz. O sol bateu-me na cara e eu fechei os olhos, num prazer duplo. Chegamos: Adeus, boa noite.

Meto-me num café, como um super-pequeno-almoço. Meto mais cafeína no corpo e penso que estou a cometer um erro. Filmes portugueses neste estado? Vou adormecer no cinema, está visto. O primeiro filme é de 1929. É de Manuel de Oliveira. Não Manoel. Mudou de nome como a antiga primeira dama. Se eu me tornar famosa o que farei eu com o meu nome? Não tenho "u" para mudar para "o", e duplicar o "t" no meu caso seria ridículo. "Douro faina fluvial": é interessante ver pessoas em 1929 a trabalhar no cais do Douro no Porto, os barcos a serem carregados e descarregados, as pessoas são encardidas e simpáticas. O realizador constrói pequenas histórias e eu sorrio. Segue-se "Rio Vermelho" de Raquel Freire e de novo o Douro, mas hoje, e o Douro parece limpo e as pessoas nadam nele e alguém nasce nele e chama-se Maria do Além. "Respirar (debaixo d'água)" de António Ferreira, já tinha visto, foi no que se descobriu o natural Alexandre Pinto, a história é bonita e triste, como é um primeiro amor. "Portugal já faz automóveis", de novo Manuel de Oliveira, em 1938, um senhor mostra o carro orgulhoso, abre as várias portas. Acho que já vi algo assim, uma publicidade americana dos anos 50: uma dona de casa abria os vários electrodomésticos. Antes das feministas e da queima dos soutiens. Há uma avenida perfeita, o empedramento incólume, tílias a toda à volta, como na terra onde cresci. O senhor conduz o carro à volta e pára muito junto à câmara. O senhor é corredor. Num enquadramento as taças que ganhou dispõem-se sobre o capot. Rio-me. Estarei enganada se pensar que o Manuel de Oliveira está a gozar? Talvez seja demasiamente simples. Mas quem sabe: este é o Manuel, não o Manoel.

Gostei imenso. Não adormeci.

* refrigerante biológico.

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