quarta-feira

incompletudes

Helena,

este assunto está-me a incomodar. Achas mesmo que as pessoas inférteis resolvem submeter-se a um processo de fertilização (que segundo ouvi é tudo menos um passeio ao parque, especialmente para as mulheres) porque estão preocupados com a falência da segurança social? Não te parece que o que a Associação Portuguesa de Infertlidade está a fazer é a falar a linguagem de político-economicista? Porque é para esses político-economicistas que dirigem a carta?

Quanto aos interesses da criança: está-se a exigir das pessoas que estão dependentes de ajuda exterior para serem pais que sejam ideais. Quem adopta e quem é infértil tem que estar a um nível de perfeição que não existe. Uma criança merece o ideal, mas em primeiro este não existe e quem define este ideal? O Estado e parece que é ser-se casado, mulher e homem. Eu fui uma criança cheia de sorte. Caí num casamento ideal que até o Ratzinger iria abençoar. Não gostei. Além disso, tenho assim uma panca em resultado da experiência. Mas sou resiliente e tento fazer as pazes com as imperfeições dos meus pais. Contudo, eles amaram-me e eu parece-me que à distância a que escrevo é o que podemos pedir aos nossos pais, que tomem conta de nós e nos amem. A sua imperfeição é um daqueles escolhos da vida. Mas presumo que a criança tem direito a que os pais andem com umas pás a protegê-la da vida, inclusivamente deles próprios. Vamos a ver o resultado.

Quanto ao direito da criança saber de onde veio o espermatozóide, não me consigo livrar da imagem de uma mulher que desejou e amou um ser antes dele mesmo nascer. Cuidou dele até que um dia ele pergunta quem é o seu pai biológico e ela explica que não sabe, que veio de um banco de esperma. O que me estás a dizer é que essa criança tem o direito e até é compreensível que ela amasse o amor da mãe e diga que a sua vida a protegê-lo e a cuidar dele vale menos que um espermatozóide. E o facto dele não saber de onde vem esse espermatozóide é uma miséria, mas o igualar de uma vida de amor a um espermatozóide já não.

Deve ser da minha formação científica, mas para mim tem um valor imensuravelmente superior a entrega de alguém que cria uma criança, que duas células que mais não são que os planos de construção. A valia que eu dou ao conhecimento da sua proveniência é para o caso de erros nos planos, ou seja, caso médico. Esta obsessão por estas duas células parece-me coisa primitiva. Além de mesquinhez. Então, tem-se uma vida inteira pela frente e perde-se tempo com alguém porque talvez tenha o sobrolho parecido com o nosso? Eu amo os meus pais pelo que foram na minha vida, não porque corro o risco de doar aos meus filhos o narigão do meu pai ou o mau feitio da minha mãe.

Para mim a miséria é este enaltecimento da biologia em detrimento dos sentimentos. Há pessoas que querem amar uma criança e precisam de ajuda. Em vez de a terem recebem bofetadas na cara porque não são perfeitas. Pode-se dizer que são os escolhos da vida. Azar. Azar se não encontraste o par da tua vida, azar se és infértil. A solução existe, mas azar. Quem pode, pode e nem tem de ser perfeito. Aos outros, podem ter toda a capacidade de amar e cuidar, que isso não interessa um pinchavelho. O que interessa é a biologia. É irónico, que eu, uma cientista, dê valor à alma como entidade acima da biologia e que sejam os leigos a agarrarem-se a duas células e a acreditarem que é nelas que se encerra a essência da sua alma. Que almas microscópicas andam por aí.

2 comentários:

Helena Araújo disse...

Não me mates, Abrunho, que eu sou tua mãe!
(era uma frase da primeira telenovela que passou em Portugal (Gabriela), que ficou célebre)
;-)

Já tentei explicar melhor a minha opinião num segundo post, e até já pedi desculpa pelo mau jeito do primeiro.

Acrescento aqui que o direito a saber quem é o pai biológico não exclui nem nega o amor dos pais sócio-afectivos. Mas parece-me que já há provas suficientes de que o desconhecimento do pai biológico provoca inquietações graves nos filhos. Copio para aqui uma passagem importante de um relatório sobre o tema (está no tal post, mas vem mesmo a calhar para responder ao que dizes):

Issues for the Child
"Is the desire to have a child at whatever price more important than the self-esteem of the person you create?"
(New York Times Magazine, July 20, 1980, p 14).
It was largely through the efforts of adult adoptees that the various professionals and the public were made aware that this group had been denied certain basic rights and had been reduced to an inferior status by virtue of the secrecies involved in most of the adoption processes. Now we are seeing the same sort of situation arise in the case of AID and surrogate births, only the problem is even more complex.
"They need never know," one might say. But they frequently do find out in spite of the best attempts at secrecy. When they do find out they feel cheated and betrayed. And when they then try to find out the true story of their birth they often embark on a path marked by frustration and many unanswerable questions. The effect on the personality and behavior of an AID or surrogate child can be profound and lifelong.
We do not mean to imply that knowing the facts relating to the birth will insure a normal emotional development. Quite the contrary. Persons conceived by these means will always have some problems of adjustment and acceptance of their status but we do feel that they are better off knowing the truth from the outset.


Se estes problemas existem, não os podemos ignorar, nem podemos dizer às pessoas que sofrem devido a eles que não deviam sofrer. Por esse motivo, penso que não podemos concordar com um processo que "força" pessoas a nascer nestas condições.

Podes dizer que não é justo, porque uma mulher fértil pode engravidar de um one-night-stand e uma mulher infértil não tem essa possibilidade. Mas o que me parece injusto é que uma mulher fértil engravide de um one-night-stand.

E sobre o amor dos pais, é como diz o Carlos: o amor faz os ais e os filhos.
Os divãs dos psicólogos estão cheios de casos de gente que foi vítima de muito amor...

abrunho disse...

Vou aprendendo.

Num apartezinho: a minha mãe assegurou-me que o meu nome não veio da novela, mas de um jogador de futebol. Uma verdade que preferia me ter sido escondida.