A medicina permite ao ser humano ultrapassar os seus limites físicos naturais. Se na maioria das áreas médicas isto é considerado uma benesse do engenho humano, nas áreas da sexualidade e da procriação, antigos mistérios criadores de mitos e deusas, de medos e superstições, a habituação às novas possibilidades não é fácil. É o big bang do ser humano e até onde podemos manipular esse momento chave sem desvirtuarmos a nossa alma? Não falo só da alma de quem nasce ou de quem manipula a vida, mas a consciência de todos nós, do espírito colectivo que defende a nossa existência sagrada. Isto sem religião. Esta nossa sociedade actual baseia-se na importância de cada ser-humano, na sua existência única e valiosa. A escravatura, o atirar bébés deficientes ou somente indesejados de um penhasco, o ter muitos filhos no intuíto de juntar mãos de trabalho, o vender pessoas, são tudo actos ultrapassados nos nossos parâmetros justos de vida, porque cada ser-humano é em si um ser da maior importância. Nunca em momento algum o indíviduo mereceu tanta protecção colectiva.
A pessoa subiu ao panteão do sagrado. Um panteão laico, como só assim poderia ser, pois na religião Deus é o maior. Mas ainda assim, as religiões foram atrás da conceptualização e o ser humano ascendeu por arrasto.
Contudo, há ideias que mudam muito devagar. Tabús. Onde colocar o sexo? Procriar sem sexo?*
Não será inútil salientar a harmonia que deve existir entre relação afectiva e o acto procriativo, bem como recordar que a relação afectiva e erótica, encarada na sua duração, é o contexto que dá sentido à relação sexual, tomada como acto mais pontual. A relação procriativa, fora deste contexto, contém perigos que não se devem subestimar.
A mesma consideração, contudo, pode ser abordada na base de uma análise da acção em geral e do acto sexual em particular. Em nosso parecer, o conceito de acto humano deve ser entendido, não de modo pontual mas englobante, como o conjunto dos segmentos ou das partes de uma acção significativa única. Ou seja, se qualquer acto verdadeiramente humano nunca é algo de puramente físico, mas incorpora sempre um sentido, é também este sentido que, sendo unificado, constitui em acto único os segmentos ou partes em que esse acto se deixa decompor. O conjunto do acto sexual e das intervenções de RMA [Reprodução medicamente assistida = PMA] pode considerar-se como integrado numa significativa única de amor do casal.
Relatório-Parecer sobre reprodução medicamente assistida de 1993 - 3/CNE/93
Reprodução com a utilização de um espermatozóide que não do elemento masculino do casal?
No projecto parental de um certo homem e de uma certa mulher não é o esperma que fecunda é a pessoa humana toda que assume a paternidade e a executa, no plano biológico, através do espermatozóide fecundante.
Como também, no projecto parental de um certo homem e de uma certa mulher, a maternidade não é, apenas, o óvulo fecundado, mas sim a pessoa feminina toda, com as riquíssimas transformações biológicas e espirituais do estado maternal que começam na fecundação e duram por toda a vida.
No projecto conjugal estas transformações estão integradas na conjugalidade desta mulher e deste homem.
Quando o casal aceita a contaminação do seu projecto pessoal, a dois, por um terceiro membro, anónimo ou não, é legítimo afirmar que a conjugalidade está desfeita (...)
A alínea h) do preâmbulo do projecto de Lei "justifica" a dádiva de sémen com uma afirmação inaceitável - não pode negar-se (a dádiva de gâmetas masculinos) sempre que assumidas todas as consequências que podem resultar de tal acto pelos potenciais "beneficiários". É como se dissesse que se eu assumir as consequências de ser preso não se me pode negar o direito de roubar ou até de matar.
Declaração de voto de 29 de Julho de 1997 de Daniel Serrão relativo ao parecer 23/CNEV/98 sobre o projecto de proposta de lei relativo à Procriação Medicamente Assistida
O Prof. Doutor Daniel Serrão pode negar à vontade (declaração de voto de Julho de 2004), mas está a falar de adultério médico. Os fantasmas masculinos são muito poderosos.
Respeito mais o seu argumento de que a actividade do médico é curar doenças, neste caso esterilidade/infertilidade, sendo que a reprodução heteróloga (dádiva de gâmetas por um terceiro elemento) não cura nada. Mascara a deficiência. Contudo, ainda assim, usar uma prótese não devolve à pessoa o membro em falta, mas permite-lhe uma vida similar à que teria com o dito. Nunca ouvi ou vi médico arengar sobre este mascaramento.
A analogia que ele faz no fim da citação está, na minha opinião, incorrecta. Para se adequar seria: "É como se dissesse que se eu assumir as consequências de ser preso não se me pode negar o direito de me roubar ou até de me matar." Agora já não tem muito sentido...
Mas ainda assim, os pruridos do Daniel Serrão sobre a reprodução heteróloga não os coloco totalmente de parte. Ironicamente, com base naquilo, que eu no início desta minha labuta, negava a pés juntos: que as pessoas, tendo pais carinhosos, tivessem a necessidade de saber dos pais biológicos. Segundo o que percebi da minha pesquisa, há um processo durante o desenvolvimento da criança em que ela faz a identificação biológica. É uma ligação às origens que é importante para a pessoa. Não só as pessoas que nasceram por PMA, mas pessoas adoptadas procuram por essa informação. A maior parte deles nem querem conhecer os pais cara-a-cara. Querem somente saber coisas como a cor dos olhos, o cabelo... Para estas pessoas que sentem este desligamento entre elas e quem lhes deu origem genética, o momento deles serem pais é ainda mais intenso do que para a maior parte de nós, porque é a primeira vez que têm uma ligação biológica com alguém. Como estás a ver, Helena, I surrender. Assim, na reprodução heteróloga, é importante que a criança tenha acesso ao seu eu biológico. Não sei até que ponto soluções esquisitíssimas, como o caso no Reino Unido, em que uma irmã vai criar a criança, a outra deu o óvulo e a terceira deu o útero, pode curto-circuitar o processo de identificação biológica da criança. Ela irá conhecer todos os intervenientes na sua concepção, mas serão intervenientes a mais?... Aqui preciso de assistência.
Tudo é muito simples e muito complicado. Isto são assuntos extremamente delicados, que se decidirmos reflectir sobre eles, nos vai deixar com enxaquecas do diabo. Na minha opinião, a lei não contempla toda a gente que de uma forma justa poderiam aceder à PMA. Contudo, um aspecto desta lei agrada-me sumamente: que esteja baseada em muita reflexão e discussão, integrando o melhor possível o interesse de pais e crianças, de forma a que exista uma base ética para a nossa sociedade, o princípio da dignidade humana protegido. Sem estarem com o disparate: se os outros fazem, também o fazemos nós. Se a nível individual eu não vou atrás de quem se amande de um prédio, agrada-me que os legisladores da sociedade portuguesa, a que pertenço, também o não façam.
Se me apetecer, continuo com os meus cortes, mas, neste momento em que escrevo, sinto-me muito cansada de reflectir sobre isto. Talvez seja o momento de eu contemplar outras coisas.
* Confesso que me divertiu. O sexo, o acto que só deve ser cometido (porque para os católicos o sexo comete-se) para efeitos procriativos. Onde metê-lo, quando a procriação não se faz com recurso ao sexo? Ficarão os católicos obscenamente felizes por se poder evitar o acto impuro? Os católicos não são pessoas para se alegrarem com a possibilidade das suas mais invías ambições se poderem alcançar. Eles são mais do estilo de infernizar. Eles são mais do distribuir cruzes e dizer: "Esta é a tua cruz para a vida. Foi-te dada por Deus."
5 comentários:
Acho admirável que tenhas levado a tua pesquisa tão longe.
Já disse: daqui para a frente pensas tu, e depois indicas-me o caminho. ;-)
Só uma ressalva em relação a este post: cuidado com a dor de corno! Já te imaginaste a crescer com um pai que anda à rasca porque não és filha biológica dele?
A verdade é que só sei que nada sei. O que despoletou esta discussão foi uma exigência (direitos iguais para todos, em quaisquer circunstâncias) que esquecia os direitos dos filhos. Do que li da psicologia e da psicanálise, parece-me que estamos a brincar com coisas muito sérias.
Mas não sei o suficiente para poder decidir. Mais dois empregos que não quero ter: especialista numa comissão de ética, ministro de qualquer coisa ligada a isto.
Helena,
deve ser horrível deve, como um pai que anda neurótico porque desconfia que não é nosso pai, mas no caso da PMA ele participa se quer. As pessoas têm que ser maduras, adultas, responsáveis, para que tendo a informação olhem bem para si mesmos e decidam se podem ou não. Depois têm de engolir e pelo menos fingir bem. Senão estamos feitos. Senão pára mesmo tudo, senão nunca podemos confiar nas pessoas e tratamo-las como crianças.
Como diz a minha irmã quando me meto em situações que depois quero desistir: puseste a cera agora é arrancar. Agora que sou adulta já nem me queixo. Sou eu que digo pra mim mesma: puseste a cera agora arranca. É a vida. Eu até penso que o que nos diz que somos realmente adultos, além da independência material, emocional da nossa família é a capacidade para assumirmos as nossas acções.
Mas eu amacio a linguagem. Não quero que o Daniel Serrão escreva o nome no google, chegue aqui e tenha uma trombose de indignação. He he he
Abrunho,
mais uma achega: penso que ter um filho em condições normais (pai e mãe, resulta à primeira, com muito amor, etc.) já é uma situação limite. Bem, na realidade, o segundo filho é que lixa tudo, porque deixa de haver um triângulo e começa o caos...
Não vou dizer que pára tudo por causa do risco da dor de corno, mas é preciso ter esse risco, e outros, em conta.
É mais complicado que "pôr a cera e arrancar", é uma criança a crescer com pessoas que não se dão bem com as circunstâncias da sua origem - nem que seja apenas um fantasma.
Vai perguntar ao Freud: a cabeça humana é muito complicada.
Podes dizer a alguém: assume-te, faz por ser adulto. E ele responde: vai tu.
;-)
Em suma: é complicado, não sei.
Só não quero que as coisas se resolvam numa de direitos iguais e tudo a monte e fé em... hmm, fé em quê?
Ainda estás aí?
Ocorreu-me agora, ao ler o último parágrafo, que não conheço um único católico que cometa sexo.
Isso é preconceito, ou andas com os católicos "errados"?
Eu ando com católicos portugueses não praticantes ou ex-católicos com horror aos tabús católicos. Quando escrevi aquilo pensei nos estatutos da religião, que as pessoas não usando no seu dia-a-dia, ainda assim usam nos seus discursos. É o que se chama hipocrisia.
Enviar um comentário