segunda-feira

Conversa que surgiu da homenagem Lisboa 1506

Um amigo meu alemão resolveu pedir à avó que lhe permitisse ler as cartas que ela recebeu do marido durante e após a II Guerra Mundial. Um mergulho na história da Alemanha e dele. O avô foi um juiz bem sucedido no aparelho nazi. Foi preso pelo exército soviético e acabou por morrer numa das suas prisões. A avó fugiu com as filhas pela mão, numa grande caminhada de terror à frente do exército soviético, do que é hoje Polónia para o que é hoje a Alemanha. Nunca conseguiu falar desses momentos. Segundo o que ele me disse, o avô nunca assumiu nenhum mal na sua conduta. Ele tinha sido, na sua consciência, um homem responsável, honesto, que tinha feito o seu dever para com a pátria e a família. O meu amigo falou-me de um livro que andava a ler de um Sebastian Haffner, um alemão com um começo de vida quase a papel químico da do avô. A mesma cidade, bairros parecidos, a mesma escola, a mesma formação. Contudo, um fugiu para a Grã-Bretanha antes da guerra e o outro tornou-se nazi. "Porquê?", pergunta-se*. As minhas perguntas são outras. Disse-lhe: "Eu quero saber como era a Alemanha antes da guerra por alguém que o viveu. Achas que esse livro pode responder-me?". "Sim, penso que sim. Mas tens que ter umas luzes da história da Alemanha." Ok, wikipédia.

* Lembrou-me o filme "Capote". A certa altura Truman Capote, o escritor de renome, diz de Perry Smith, o assassino: It's as if Perry and I grew up in the same house. And one day he went out the back door and I went out the front.

20 comentários:

João Melo Alvim disse...

A "História de um Alemão" que apanhei por aqui numa livraria, passou despercebido em Portugal, o que não se estranha, dada a aversão à História que por aqui se sente.

O livro, sem ser uma obra-prima da escrita, esclareceu-me mais um bocadinho sobre como aquela loucura foi possível. Uma coisa é ler livros de História e ver os factos e números de forma fria mas outra, muito melhor, é ler descrições na primeira pessoa do que se passou, aproveitando para aprofundar conhecimentos. Não esquecer continua a ser um exercício de minorias, apesar de tudo. (http://timoneiroperdido.blogspot.com/2006/02/leitura_08.html)

Helena Araújo disse...

Deixa lá o Wikipedia e compra o livro da exposição "Fragen an die Deutsche Geschichte - Ideen, Kraefte, Entscheidungegen - von 1800 bis zur Gegenwart". Sintético, bem organizado, bastante completo.

Mas claro que a Gegenwart acaba na queda do muro - há várias eternidades, portanto.

Encontras por exemplo aqui (tens um dia para decidir):
http://cgi.ebay.de/Fragen-an-die-Deutsche-Geschichte-Taschenbuch_W0QQitemZ8411566327QQcategoryZ87610QQssPageNameZWDVWQQrdZ1QQcmdZViewItem

Helena Araújo disse...

João,
Isso que dizes sobre os factos, os números e o perceber realmente o que se passou lembra-me uma história contada por um amigo alemão. Como a maior parte dos alemães, ele conhecia bem os factos e os números do período nazi. Mas só começou a perceber realmente o que tinha sido o Holocausto quando, em 1990, num hospital em Chicago, viu um doente a fugir pelo corredor, aos gritos e completamente fora de si, porque o quarto tinha grades nas janelas. Era um judeu sobrevivente de um campo de concentração.

Abrunho,
o problema é o do costume: prognósticos, só no fim do jogo.
(estou a brincar um bocadinho, mas, pensando bem...)
Como é que se sabe qual é a porta da frente e a das traseiras? Por exemplo, no caso actual do Irão?

João Melo Alvim disse...

É óbvio que quem gosta de História sabe desde logo que há dois planos (ou até mais), mas o momento em que se vai um bocado mais longe que a visão "oficial"/normalizada, mesmo que não se esteja a fazer História, é importante. Por muito que queiram tornar tudo muito preto no branco, só quando nos confrontamos com as zonas cinzentas é que realmente percebemos.

Li também há pouco tempo uma outra visão (ligeiramente romanceada) da ascensão do nazismo, chamada "Paraíso de Hitler", com a ocupação nazi da Dinamarca como cenário para as memórias de um SS e o seu envolvimento na espiral do III Reich. Vale bem a pena.

Helena Araújo disse...

Desconversando: e o Vaterland?
Na altura em que o li, até tinha medo da própria sombra...
Em Portugal vai passar "das Leben der Anderen", sobre a Stasi?

É verdade que prognósticos só no fim do jogo, mas as regras do jogo propriamente dito são muito repetitivas...

João Melo Alvim disse...

Vaterland/Fatherland é qualquer coisa de surpreendente. Sei que há um telefilme com o Rutger Hauer, mas nunca vi... se calhar nem se perde nada e a imagem do livro fica "salva".

Que eu saiba, por cá não estreou, pelo menos com a tradução "a vida dos outros". Do que li, na pesquisa, fiquei com bastante vontade de o ver. Será escusado lembrar que cinema alemão, por aqui, longe de Lisboa e Porto, muito raramente. Mas quando "A Queda" e "Adeus Lenine", passaram aqui pelo burgo, a sala parecia cheia.

abrunho disse...

Boa tarde aos dois. :-)

Sim Helena, prognósticos só no fim. Na minha própria vida eu apanho-me a pensar como é que eu sou o que sou, em que momento se conjugaram os factores para eu, por exemplo, ter vindo viver para a Alemanha? Etc., etc. É uma teia que só compreendemos no fim.

História é isso mesmo. Quantas vezes ouvimos os historiadores dizer que ainda é cedo para compreender. Relativamente 'a II Grande Guerra só agora chegamos ao momento em que se pode olhar para trás e objectivamente analisar o que se passou. Nao só porque agora se abrem arquivos importantíssimos (no outro dia li no jornal a abertura de um na Alemanha, agora estou falha de qual, que antes só era usado pela Cruz Vermelha para identificaçao de pessoas), mas porque as geraçoes anteriores ainda nao conseguiam olhar para o que se passou de frente. Já nao é o primeiro amigo alemao que me diz que nao soube da Guerra pelos avós, porque eles nao queriam falar do assunto. Preferiam esquecer. Traumas. A mae de uma amiga minha é completamente esgrouviada e eu uma vez fiz um comentário brincalhao, mas insensível e a minha amiga contou-me uma história horrível. Começa com uma criança de dois anos a perder a mae devido a tifo, continua com ela a fugir com os irmaos do exército soviético, continua, após a Guerra, com ela separada dos irmaos e a viver com várias famílias, até que finalmente o pai foi encontrado (na altura tinha 12 anos) e a familia juntou-se novamente. Eram todos uns estranhos agora. Mas nao acaba aqui e nao conto mais, porque por incrível que possa parecer piora. Eu no fim da história só consegui dizer que compreendia totalmente as maneiras da mae. Eu até compreenderia se ela fosse ainda mais louca.

Uma amiga de uma amiga um dia destes contou-nos que a avó dela é incapaz de deitar comida fora. Pode estar podre, que ela é incapaz de deitar no lixo. Têm que o fazer 'as escondidas, senao a senhora quase que lhe dá uma coisa má. Eu pensei imediatamente se nao foi fome que ela passou durante a Guerra. Na Alemanha acaba sempre por se ir 'a Guerra para encontrar explicaçoes para comportamentos que 'a primeira vista sao loucos. Mas nao sao loucos. Sao os "resultados do jogo".

abrunho disse...

Helena,

essa saúde?

Obrigado pela sugestao. Nao sei é se o meu alemao está 'a altura, que ele é assim para o primitivo. A minha língua de trabalho é o ingles.

Ando há dois meses para ler um livro em alemao. Dois meses!

João Melo Alvim disse...

Por falar em lembranças e a dificuldade que por vezes temos em abordar seja o que for relativo a Portugal, tome-se a Guerra Colonial. O manto de vergonha com que cubrimos esse capítulo permite aproveitamentos saudosistas nojentos e mantem ódios imbecis. Enquanto isso, milhares de pessoas, combatentes e civis, europeus e africanos ficaram com a vida destruída.

abrunho disse...

João,

na mouche.

Helena Araújo disse...

João,
pois, na mouche.

Abrunho,
então está bem, volta lá à Wikipedia.
A saúde vai bem, obrigada. Estou quase como nova.

Como é que a história da mãe da tua amiga continua?

Já reparaste que os alemães não têm patriotismo? Coisas tipo proud to be American ou cantar a marselhesa do fundo do coração não acontecem na Alemanha. Se tivessem escolhido um bispo português para Papa, até os ateus saíam à rua, cheios de alegria por "sermos os melhores". Os alemães, não.
A guerra explica realmente muita coisa.

Sobre a fome: contaram-me a história de um homem que vinha a fugir dos russos e foi avançando pela parte ocidental da Alemanha até que encontrou um gato. Ficou aí, porque era sinal de que naquela região não se passava fome.

abrunho disse...

A história da mãe da minha amiga continua com ela e a irmã a serem sexualmente molestadas pelo pai. Com ela a fugir de casa, mais tarde casa e o casal passa uns anos felizes até que já com duas meninas ela começa a ter episódios graves de depressão, até chegar à tentativa de suicídio e a partir daí foi um entra e sai do hospital psiquiátrico. Em linhas gerais. Eu ao fim sentia-me mal, um elefante que entrou numa loja de porcelanas...

É difícil não notar esse aspecto do não patriotismo. É tão óbvio. Mas quanto ao Ratzinger. Se bem me lembro o Bild tinha na capa algo como "Temos papa". :-)

João Melo Alvim disse...

Desculpem a intromissão. Mas achei curioso e interessante a questão do patriotismo. Nunca tinha pensado nos alemães com um povo "assexuado" em termos de patriotismo. Não sofro daquele complexo do "eles são uns nazis", que tantos ainda têm por cá, mas pensava que existia uma relação mais efusiva com a pátria (mais no sentido de herança alemã), já que muito para se orgulharem. É claro que nem me atrevo a descontar a Guerra, mas só estou a tentar manter as coisas nalguma perspectiva.

Lá está, a distância e o desconhecimento não me tinha permitido conceber uma ideia dessas. Mas acima disso, acredito, só mesmo a guerra.

abrunho disse...

Os alemães têm imensa dificuldade em mostrar qualquer tipo de patriotismo e se em algum momento têm algo de bom a dizer do país fazem-no sempre de uma forma extremamente lógica e objectiva. Falar mal eles fazem-no de uma forma muito mais descontraída. Eu pessoalmente nunca falo mal do país deles à frente deles. Parece-me mal que eles concordem comigo! A base é a guerra, claro.

Helena Araújo disse...

Abrunho,
o título da Bildzeitung era "somos Papa!" (como quando se ganha no futebol e se diz "somos campeões!") - muita gente não percebeu, e de um modo geral poucos gostaram desse título. Justamente no caso do Ratzinger, foi muito estranho notar a falta de alegria por ser um alemão, "um dos nossos".

João,
tenho a teoria de que as pessoas de cada país recebem um pacote completo de História que faz deles um "nós" (os portugueses têm o Viriato, os heróis dos descobrimentos, o Luís de Camões, o Fernando Pessoa, os brandos costumes em vez do colonialismo, o Salazar entendido como "ditador moderado", etc.).
Os alemães de hoje receberam no pacote deles um capítulo insuportável, e por isso recusam o pacote completo. Além disso - e é onde realmente os admiro - eles fizeram um esforço de olhar para a sua história, em vez de a relativizar.

João Melo Alvim disse...

Esse esforço do olhar a História é, a todos os títulos, notável. Nós, por exemplo, ainda vivemos com os complexos da relação com Espanha (o chamado complexo de Aljubarrota), continuamos a achar que fomos uma enorme potência em todos os campos durante os Descobrimentos, que em toda a nossa História só perdemos a Batalha de Alcácer Quibir (e mesmo assim porque devia haver um árbitro algures), insistimos que a I República foi verdadeiramente democrática e que o Estado Novo, vendo bem não foi uma verdadeira ditadura.

Quando falo em "nós", sabendo bem que cada vez mais o português é susceptível (e lida mal com a ironia), obviamente que faço uma generalização que, aos olhos de muitos, pode soar desagradável, mas que nesta relação com a história, penso que transmite, fruto de uma educação má, uma ideia verdadeiramente geral.

Helena Araújo disse...

João,
(se ainda aí estás)
esse teu comentário lembra-me o que uma amiga alemã, que passou algum tempo em Portugal, dizia a rir: vocês, portugueses, parados para sempre na época gloriosa dos Descobrimentos... o vosso futuro foi há 500 anos.

João Melo Alvim disse...

Essa frase está muito engraçada.

Eu não questiono o momento histórico, que seguramente foi fabuloso, mas questiono as lições que se retiraram dali. E se por momentos estivemos na vanguarda geopolítica, em termos económicos nem por isso. Que o momento inspire tudo bem, que tolde a visão, é que já me custa, porque viver do/no passado é coisa que me faz muita confusão. Já viver hoje, a aproveitar o que ficou do passado (turismo) isso é que era assunto, mas ainda falta muita sensibilização.

abrunho disse...

Quando ouço falar dos Descobrimentos é o discurso "eles foram tão bons e nós degeneramos". DEêm-me paciência para esta ideia passada. Eles eram gananciosos e puseram a ganância a render.

Confesso que se há coisa que mais me entedia na portugalândia é a eterna imagem da naú. Opá, cansa. E são os discursos miserabilistas e generalistas. Mas querem saber o que me irrita mesmo, mesmo, mesmo? São os cronistas dos jornais e agora da blogosfera que acabam os seus textos com "bla bla bla, que é a marca dum país miserável OU inculto OU triste OU atrasado.

Por amor de Deus, que saiam das cavernas intelectuais e respirem o ar que está à volta e saibam que: bla, bla, bla, que é a marca da intelectualidade de Portugal "pobreza de espírito e eterna depressão".

Sinceramente, estive em Portugal no Natal e a certa altura já não conseguia com o espírito que anda no ar. Tanta depressão cansa e ou arregaçam as mangas e animam ou vão mesmo pelo cano abaixo. E se é para serem miseráveis pelo menos sejam-no com alegria. Assim, como os brasileiros.

Eu por acaso estou no tópico? Já não sei. Olha, apeteceu-me desabafar isto.

João Melo Alvim disse...

Sempre que alguém triunfa, é sempre por todas as razões menos por mérito próprio. É um problema de auto-reconhecimento e de não se acreditar nas capacidades, promovidas por uma História e um Estado paternalistas que tardam em ser contrariados. Todos os dias há exemplos de que dá para ser melhor, para viver melhor, para ter melhores trabalhos, mas ainda há muita gente que não se quer convencer disso.

Por mim, começava na Educação, deixando de ser aquela comédia pseudo psicopedagógica que serve para criar massas acéfalas que discutem os 3 pontos de um jogo de futebol como se mais nada importasse.

E depois mérito, mérito, mérito, no que toca ao Estado para ver se em vez de atrapalhar e gastar se passava a criar condições para que dessemos o pulo aproveitando o que temos de bom e que nos possa distinguir. É possível, todos sabemos que é, mas o pessoal não se convence...