Vítimas absolutas
Os vizinhos asiáticos não perdoam ao Japão a selvajaria da sua aventura imperial. Na China, ela é responsável pela morte de um milhão e meio de militares e de mais de dez milhões de civis. Os japoneses usaram armas biológicas contra a população. Três mil chineses foram sacrificados em experiência laboratoriais. A resistência japonesa à memória, que obriga o Governo a patéticos e quase anuais pedidos de desculpa, permite que as antigas vítimas façam permanente chantagem sobre Tóquio.
O problema é mais fundo, explica o holandês Karel Van Wolferen num dos mais penetrantes livros sobre o Japão (The Enigma of Japan Power, 1989). É que o Japão tem uma cultura de vitimização e até um termo para isso - higaisha ishiki (consciência de ser vítima). Na vida social e na história.
Os japoneses viveram a guerra, quer na conquista quer na derrota, como uma "catástrofe natural", de que ninguém é responsável. Escreveu um intelectual, citado por Van Wolferen, a propósito da invasão da China: "No exterior, um Japão animado por intenções imperialistas parecia invadir a China. No interior, a maioria dos dirigentes políticos tinha o sentimento de que o país era arrastado para o pântano da guerra por uma espécie de processo inevitável."
Mesmo sem ter em conta a propaganda revisionista, os filmes e romances apenas relatam o sofrimento dos japoneses. Estes ficam estupefactos quando lhes explicam o sofrimento causado aos outros.
Prossegue Van Wolferen: "Os bombardeamentos de Hiroxima e Nagasáqui simbolizam a forma última da "vitimização"." Os japoneses sofreram "de forma única e exemplar". "É hoje corrente no Japão considerar estes bombardeamentos como o acto mais abjecto de toda a guerra. Alguns vêem neles o crime do século".
A explicação da guerra, da responsabilidade do sistema imperial, do processo de capitulação deixam de interessar. "Hiroxima é um templo do martírio japonês. Eles consideram que o Japão sofreu em nome da Humanidade para que o mundo tomasse consciência da importância da paz." Tal como o santuário de Yasukuni, onde estão as almas dos militares mortos, inclusive os criminosos de guerra, que tantos sarilhos tem criado à diplomacia japonesa.
A Alemanha fez um trabalho de memória profundo, porque associou a sua tragédia à sua responsabilidade histórica. O Japão recusa essa associação, portanto não faz o trabalho de memória. Hiroxima tornou-se num presente envenenado, que consolida a cultura da amnésia.
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