domingo

As árvores do meu pai são minhas também



No 100 nada li um texto belíssimo: "As árvores do meu pai". Como quando lemos reflectimo-nos a nós, pensei no meu pai e nas suas árvores. Contudo, o meu pai não é bem um cuidador de árvores, mas mais um cientista maluco. Ele planta e enxerta e decepa e experimenta, criando criaturas aladas despojadas do seu voo, retorcidas na forma de fumo, siameses estranhos. Mas não pensem mal do meu pai. Ele ama as suas árvores e não lhes quer mal. Eu espero que sejam felizes na sua mudeza de árvore e várias vezes observei-as e auscultei-as esperando ouvir-lhes a respiração primordial talvez diferente, talvez aflita.

As árvores do meu pai fazem parte integrante da minha memória antes da minha saída para o mundo. Partilhei muito com elas. Aquela pereira-anã muito retorcida e cheia de nós, a que eu colava gaze molhado a sonhar que era enfermeira. Ou a cerejeira que, num ano, criou durante duas semanas o assento perfeito num ramo alto em que eu me recostava de livro na mão e a comer as cerejas à distância do braço. A pereira luxuriante que continha em si três espécies diferentes, atirando em diferentes épocas, pêras diversas à minha boca de fome satisfeita. O diôspire com quem partilhei o meu pequeno-almoço de Outono tantas tantas vezes. As oliveiras a que eu me encostei em greve friorenta pelo direito alienável de uma adolescente de fazer nenhum (muito menos apanhar algumas míseras azeitonas no Inverno gelado!). Eu deitada debaixo da macieira a observar os raios de sol a dançarem à volta das folhas. A abeloeira que me dava visão para uma janela de ilusões.

Quando retorno ao meu reino imenso, que agora, ao meu olhar de adulta é um apertado jardim, caminho devagar a reencontrar todas as amigas. Cada uma delas cria em mim um estado de profundo contemplamento, em que sou levada na maré das memórias. Meço-lhes o crescimento, as rugas, a beleza, atrevo-me a tocá-las e é nesses momentos que eu melhor sinto a alegria despreocupada da minha infância e as perguntas amarguradas da minha adolescência. As árvores do meu pai são os diários do meu amanhecer.

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