quarta-feira

A sociedade de consumo

A blasfémia é um blogue por onde tenho passado várias vezes por dia. Entre a orgia crítica, tão excessiva que cai no descrédito, existem uns textos a defender o modelo económico, cujas únicas leis seriam as do mercado. Não sei se é blasfémia, sei que esta visão me deprime. Deprime-me uma sociedade que seja governada por leis humanas cujo único objectivo é somente a acumulação de riqueza e mais riqueza. Vir-me-ão dizer que vários agentes a puxar para o seu lado, acabará por nos deixar, a meio caminho, na abundância... Que seja assim, pergunto ainda: "Abundância de quê?" Desculpem a minha dúvida, que me levou a acercar a prateleira, puxar um livro e ler:

A esperança que alentava Marx e os melhores movimentos trabalhistas - de que, algum dia, essas horas vagas emanciparão os homens da necessidade e tornarão produtivo o animal laborans - baseia-se na ilusão de uma filosofia mecanicista que supõe que a força de trabalho, como qualquer outra energia, nunca se perde, de modo que, se não for dissipada e exaurida nas pesadas tarefas da vida, nutrirá automaticamente outras actividades "superiores". O modelo que inspirava esta esperança de Marx era, sem dúvida, a Atenas de Péricles que no futuro, graças ao vasto aumento da produtividade do trabalho humano, prescindiria de escravos para se sustentar e se tornaria realidade para todos. Cem anos depois de Marx, sabemos quão falacioso é este raciocínio: as horas vagas do animal laborans nunca são gastas noutra coisa senão em consumir; e, quanto maior é o tempo de que ele dispõe, mais ávidos e insaciáveis são os seus apetites. O facto de estes apetites se tornarem mais refinados, de modo que o consumo já não se restringe às necessidades da vida mas, pelo contrário, visa principalmente as superfluidades da vida, não altera o carácter desta sociedade; implica o grave perigo de que chegará o momento em que nenhum objecto do mundo estará a salvo do consumo e da aniquilação através do consumo.

A condição humana de Hanna Arendt

Para Arendt, o animal laborans é o agente que labora, i.e., cuja actividade pretende sastifazer as necessidades imediatas. O trabalho é a actividade que produz objectos/serviços para lá das necessidades. Nos tempos antigos a maior parte das pessoas laboravam, mantendo alguns poucos, que trabalhavam. Daí a escravidão de muitos para conferir a liberdade a poucos. Segundo esta definição o agricultor labora, o artista trabalha; o comerciante labora, o político trabalha. :-)

A revolução industrial não libertou o homem do labor, mas imprisionou-o ainda mais. Antes o labor era uma actividade que seguia o ciclo da natureza, o resultado do labor ainda que efémero e cansativo, poderia conferir prazer (quantos poemas a cantar os camponeses e os pastores?). Com a introdução da montagem em série a repetição própria do labor torna-se independente de qualquer ciclo natural e o "laborador", a maior parte das vezes, nem consegue apreender o resultado final da peça que constrói. A automação também falhou em libertar o homem do labor, mas deu-lhe tempo livre. Assim, temos hoje mais "laboradores", mas com mais tempo para poderem também ser trabalhadores. Contudo, a liberdade do trabalho para todos, sonhada por tantos teóricos do séc. XIX e XX, não foi atingida. O homem com o tempo-livre e a liberdade de escolha escolheu consumir, em vez de criar.

Mas nem tudo está perdido: a gente quando bloga trabalha! Blasfémia?

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