sexta-feira

Rememorar-se

Ele acomoda-se na solidão da cozinha, despida da actividade do dia, a cheirar a limpo, confortável, feita para o aninhar doméstico da alma. Ele senta-se no banco de madeira grosso, a cheirar a velho e a histórias contadas por noites dentro. Ele ouve-se, lá dentro as músicas do seu passado, coladas a memórias. Ele rememora-se. É a semana entre o Natal e o Ano Novo e ele pára-se. O som do vento gelado fora aninha-o e o ar limpo assopra-o. Ele pesa-se e sente-se leve, uma penugem de recordações. Ele acalma-se na felicidade da quietude que vive neste momento, naquele instante, noutro tempo. Tudo está bem. O caminho foi tomado e a viagem progride pelo futuro. No fundo do túnel, um sorriso.

quarta-feira

terça-feira

do Afeganistão, trazido aos EUA, passando pelos Países Baixos e acabando em Portugal ou quem é imensamente pobre

Já lá vai para cima de um ano que vi as fotografias da fotógrafa Stephanie Sinclair no New York Times. Tal como eu fiquei perplexa (sabemos que acontece, mas levar assim com as imagens que valem mil palavras), ficaram muitos outros (não sou abençoada pela originalidade de sentimentos, apesar de fingir que sim) e uma das fotografias apareceu-me outra vez pelo blogue dois dedos de conversa como uma das fotografia do ano para a Unicef. Poucos dias depois no compilador de textos alldaily vem este, abaixo ao dois pesos e duas medidas. Neste excerto:

It is likely that all of the female forebears of the girl in the photograph were likewise sold -- and the girl, no doubt, saw it as her fate. At the same time, she realizes that what is happening to her is not right. She might think it is "natural" for a young girl to be sold, but she also knows that it's neither good nor legitimate for her to spend the rest of her life as this man's slave. It is a type of knowledge that has little to do with experience. Rather, it is knowledge that is rooted in humanity, and in the hopes and dreams of a little girl.

The man in the image is oblivious of his wrongdoing. He's only doing what his forefathers did. Sticking to traditions increases the chances of survival. His seed will create a new person and strengthen the clan. He will impregnate this girl without love and without regret, since love is a word from far-off stories and songs, a word from the decadent West, where people have no comprehension of the harshness of life in the desert and of war without end, which is the essence of life in this part of the world.


lembrei-me deste excerto provindo do Pedro Arroja:

Os preconceitos são regras de acção automáticas que as gerações anteriores nos legaram e que nos permitem economizar muito tempo e outros recursos. Cada cultura possui os seus preconceitos e as culturas mais prósperas são aquelas que possuem um stock maior de preconceitos eficazes. Tendo-se confrontado com problemas semelhantes aos nossos no passado, as gerações dos nossos antepassados tiveram de encontrar soluções para eles. E, tendo encontrado aquela que consideraram ser a melhor para cada um desses problemas - a solução que funciona melhor na maior parte dos casos semelhantes - elas legaram-nos essa sabedoria sob a forma de regras automáticas de comportamento: "Perante tais e tais circunstâncias, faz assim e assim - não percas sequer tempo a pensar".

É o conjunto dos seus precoconceitos que define uma cultura e a distingue de outra cultura. E quanto maior fôr o número de preconceitos eficazes que uma cultura possui em relação a outra, mais próspera essa cultura será em relação à outra. É esta também a razão porque é tão difícil mudar uma cultura. Uma cultura faz-se sobretudo de comportamentos automáticos - preconceitos - que as pessoas generalizadamente aceitam e praticam de forma acrítica sem nunca questionarem a sua racionalidade. E ainda bem que assim é, caso contrário seriam imensamente pobres, na realidade, nunca chegariam a sair de casa de manhã para o trabalho.


O progresso pode ser feito com um passo atrás e dois adiante, mas há pessoas que conseguem resvalar de tal maneira que acabam por cair num atraso paradoxal.

P.S.: Bom Natal e se me esquecer, boas entradas.

quarta-feira

Gemütlich

Uma das primeiras palavras que aprendi na Alemanha foi gemütlich. Era-me óbvio que nas casas que visitava havia ali uma diferença, que inicialmente nao se deixava apanhar por palavras, entre autóctones e nao-autóctones. Mal se passava a porta até o ar era diferente. Os autóctones criavam como ninhos, cada pedacinho de palhinha, pauzinho uma construçao para um espaço de bem-estar pessoal. Acabei por definir que a grande diferença era a atitude para o espaço em que se vivia: as casas dos nao-autóctones eram garagens, onde se aparcam os pertences e o corpo, onde se realizam actividades de manutençao. Quando trouxe isto á conversa, a palavra apareceu: gemütlich, esse estado de conforto do corpo e do espírito no espaço que ocupam. Os autóctones também estranhavam a indiferença que notavam nos nao-autóctones. Em primeiro, nós nao sabiamos explicar, mas após algum esforço chegamos com uma hipótese: o clima. Vinhamos todos de países cheios de sol, em que a rua, os cafés, as esplanadas, as varandas, os alpendres, os terraços, a praia sao os nossos espaços de estar. Mas no Norte da Alemanha, o ar livre é normalmente inóspito, pelo que o estar e a vida social derivam para dentro da casa. No meu quinto ano na Alemanha, eu já absorvi um pouco desse gemütlich, pela impossibilidade de nao o fazer. Precisamos desse acolhimento exterior para o nosso interior, que se nao nos é dado pelo sol e pelos cheiros amenos, nos é proporcionado por esse mundo carinhosamente criado.

Tendo compreendido ás minhas custas o que pode significar a nossa casa no Norte da Europa, fiquei divertidamente perplexa, que uma afirmaçao que aqui encima é tao óbvia possa causar tal lucubraçao auto-denominada filosófica lá embaixo na praia do Oeste. Mas eu nao compreenderia a ironia há seis anos atrás. Há certas simplicidades da vida que só se compreendem ao vive-las.

terça-feira

Noticia de Natal

O Pedro Arroja ameaca postes sobre os portugueses. Grande alivio. Quem e' o portugues que nao gosta de chafurdar em auto-critica? Momentos de calmia sado-divertida no horizonte. Este ano nao passo o Natal em Portugal e que dizer deste alivio que me submerge? Aaaaahhhh. Sem ser obrigada a entrar em lojas, sem ter que fingir que gostei, sem ter que participar numa peca de teatro chamada Natal. AAaaaaaah. Como e' bom o Nao Natal. Esta liberdade de ser o Natal que queremos.

segunda-feira

Querer ler e nao poder

Eu leio muito, mas como vivo na Alemanha e porque a outra lingua que domino é o ingles, leio principalmente autores anglo-saxonicos. Alem disso, leio muita nao-ficcao na area da ciencia, cujos novos titulos sao em ingles. Mas por vezes tenho saudades do portugues e dou umas olhadas pelos novos lancamentos na internet, o que significa ir aos sitios de certas editoras e ver o que tem na seccao novidades. Nao e' uma actividade deslumbrante, ja' que as descricoes dos livros sao muito pobres, mas e' estilo miseravel ir ver montras de lojas dos trezentos. Enfim, que fazer quando nao ha uma livraria on-line que me de o prazer de comprar livros e autores portugueses na boa. Alem disso, nunca encontrei uma boa revista de recensoes literarias em Portugal. O mais desconcertante e' que ha' cinco anos havia uma livraria on-line com base em Aveiro, que foi fechada, segundo os donos, porque uma livraria on-line seria ilegal (estou a tentar lembrar-me do nome e nao consigo e infelizmente ja' deitei para o lixo todos os contactos que tive com eles). Este isolamento da lingua, quando se vive no estrangeiro, deixa-me por vezes bastante zangada. Da' mesmo vontade de ser de outra nacionalidade que tornasse mais facil poder ler com facilidade o que se publica na nossa lingua. E' chato invejar os franceses, os ingleses, os chineses, os italianos, os espanhois e os turcos.

Neste deserto, fiquei excitada com a noticia de uma livraria on-line com a oferta de milhares de titulos, a byblos. Uma desilusao enorme. Tenho la' ido todos os dias ver se ja' puseram aquilo a funcionar e nada. Vamos a ver: eu nao escolho livros raros. Enfim, tudo na mesma. Tudo sempre na mesma na Tugolandia. E' triste ser portugues.

P.S.: Ainda me lembro quando vim para Hamburgo dizerem-me que ha' uma comunidade importante de portugueses e que bom e que sorte. Culturalmente nao se nota nada. O resto nao me interessa.

Noite em Tóquio

domingo

Uma historia interessante

There was this best-seller a few years ago [in 1984], it went through about ten printings, by a woman named Joan Peters—or at least, signed by Joan Peters—called From Time Immemorial. It was a big scholarly-looking book with lots of footnotes, which purported to show that the Palestinians were all recent immigrants [i.e. to the Jewish-settled areas of the former Palestine, during the British mandate years of 1920 to 1948]. And it was very popular—it got literally hundreds of rave reviews, and no negative reviews: the Washington Post, the New York Times, everybody was just raving about it. Here was this book which proved that there were really no Palestinians! Of course, the implicit message was, if Israel kicks them all out there's no moral issue, because they're just recent immigrants who came in because the Jews had built up the country.

(...)

Well, one graduate student at Princeton, a guy named Norman Finkelstein, started reading through the book. He was interested in the history of Zionism, and as he read the book he was kind of surprised by some of the things it said. He's a very careful student, and he started checking the references—and it turned out that the whole thing was a hoax, it was completely faked: probably it had been put together by some intelligence agency or something like that.

(...)

He went ahead and wrote up an article, and he started submitting it to journals. Nothing: they didn't even bother responding. I finally managed to place a piece of it in In These Times, a tiny left-wing journal published in Illinois, where some of you may have seen it. Otherwise nothing, no response. Meanwhile his professors—this is Princeton University, supposed to be a serious place—stopped talking to him: they wouldn't make appointments with him, they wouldn't read his papers, he basically had to quit the program.

(...)

They had the whole system buttoned up, there was never going to be a critical word about this in the United States. But then they made a technical error: they allowed the book to appear in England, where you can't control the intellectual community quite as easily.

Well, as soon as I heard that the book was going to come out in England, I immediately sent copies of Finkelstein's work to a number of British scholars and journalists who are interested in the Middle East—and they were ready. As soon as the book appeared, it was just demolished, it was blown out of the water. Every major journal, the Times Literary Supplement, the London Review, the Observer, everybody had a review saying, this doesn't even reach the level of nonsense, of idiocy. A lot of the criticism used Finkelstein's work without any acknowledgment, I should say—but about the kindest word anybody said about the book was "ludicrous," or "preposterous."

(...)

Anyhow, by that point the American intellectual community realized that the Peters book was an embarrassment, and it sort of disappeared—nobody talks about it anymore. I mean, you still find it at newsstands in the airport and so on, but the best and the brightest know that they are not supposed to talk about it anymore: because it was exposed and they were exposed.

Well, the point is, what happened to Finkelstein is the kind of thing that can happen when you're an honest critic—and we could go on and on with other cases like that. [Editors' Note: Finkelstein has since published several books with independent presses.]

Still, in the universities or in any other institution, you can often find some dissidents hanging around in the woodwork—and they can survive in one fashion or another, particularly if they get community support. But if they become too disruptive or too obstreperous—or you know, too effective—they're likely to be kicked out. The standard thing, though, is that they won't make it within the institutions in the first place, particularly if they were that way when they were young—they'll simply be weeded out somewhere along the line. So in most cases, the people who make it through the institutions and are able to remain in them have already internalized the right kinds of beliefs: it's not a problem for them to be obedient, they already are obedient, that's how they got there. And that's pretty much how the ideological control system perpetuates itself in the schools—that's the basic story of how it operates, I think.


Noam Chomsky, The Fate of an Honest Intellectual, 2002


Em 2007:

(...) By his own account [Norman Finkelstein], his academic career was bedeviled from the start by his politics: It took him thirteen years to wrest his doctorate from Princeton, since no faculty member would agree to advise him on his thesis, an analysis of Zionism. When he finally did earn the degree, none would write him a recommendation. He went on to take a series of adjunct posts—at Brooklyn College, Hunter, and NYU—rarely earning more than $20,000 a year.

At DePaul, where he arrived six years ago, his situation improved. But the success of The Holocaust Industry, which was translated into over two dozen languages and was a best seller in Germany, raised his profile, and the critics mobilized. Harvard’s Alan Dershowitz waged a fierce campaign against him, preparing a dossier of Finkelstein’s “clearest and most egregious instances of dishonesty.” Still, his department, and the college, recommended him for tenure. But the university’s promotion-and-tenure board voted 4-3 against him, and DePaul’s president refused to overturn the decision.

(...)


Mas, esperem:

Take a minute before you conclude that the pro-Israel lobby is the sole culprit behind the witch hunt directed against scholars who criticize Israeli military rule over Palestinians. Consider Norman Finkelstein. If he had been on the faculty of an Israeli university, rather than DePaul University, he probably would be an associate professor by now.

I say that because several years ago I came up for tenure at Ben Gurion University of the Negev under similarly contested circumstances. As in Finkelstein's case, when I was recommended for tenure the president was promptly inundated with letters from outsiders seeking to influence the process. Like Finkelstein's, my sin was criticizing Israel's policies in the occupied Palestinian territories. All the calls for my dismissal emanated from America not from Israel. In one typical letter, the president of the Zionist Organization of America used ominous threats to urge the university to fire me. Yet, unlike in the Finkelstein case, ultimately intimidation failed.

Why, then, have such tactics succeeded in the United States? Why do Israeli scholars have more academic freedom than their American counterparts?

The answer is rooted in the fact that many American universities are being reconstructed as corporations whose major objective is to sell products, most obviously degrees to students. The corporatization of academic life means that faculty members are perceived as both producers and products. They are expected to come up with inventions and patents that can be sold to corporations, as well as with research funds and citations that have a pseudomarket value, since they help elevate the university's ranking. As saleable products, faculty members are valued according to a corporate calculus rather than an academic one. To put it bluntly: Finkelstein was considered a liability to the corporation; therefore he was sacked.

The remaking of universities as corporations has also altered accountability. Those at the helm have become more accountable to boards of trustees, shareholders (i.e., major donors), and customers (i.e., students, parents, and viewers of athletics events) than to the university's original mission (i.e., seeking truth and educating the next generation) and the faculty members who carry it out. Consequently administrators behave like corporate executives and are hardly invested in intellectual achievements or democratic processes.

In Israel, by contrast, all faculty members are unionized, and their salaries are determined according to rank and a series of relatively objective academic criteria. Law and business professors earn the same as their colleagues in literature and philosophy. That has a major impact on how we think about faculty members. They are not seen as no more than products, as Finkelstein seems to have been.

(...)

sábado

A aldeia 'a direita

Eu lia o insurgente, tal como leio o blasfemias. Nao concordo bastas vezes, concordo algumas, divirto-me profusamente e indigno-me por vezes. Com os tempos comecei a ficar com uma imagem menos boa, ma', muito ma' de um tipo chamado Andre Azevedo Alves. As insinuacoes e as posicoes deste senhor eram de querer distancia e nao percebia como ninguem dizia nada. Comecei a achar que ele era o tolinho da aldeia da direita blogosferica. Aquele tipo que diz disparates, mas coitado, foi nosso colega de escola, um dia no recreio la' da direita bateu com a cabeca e ficou assim. Deixei de ler o insurgente e ok. Quando vi o poste do Basta do Tiago Gomes pensei: finalmente alguem da aldeia bateu o pe' ao tipo. A coisa desenrolou-se e fiquei a saber que o Andre Azevedo Alves nao e' o tolinho da aldeia, e' mesmo considerado um dos fidalgos e o Tiago Gomes foi corrido da aldeia por causa deste tipo. Mas se o Andre Azevedo Alves e' elemento-tabu e representativo desta aldeia, que aldeia e' esta? Acho que se devia fazer um fosso muito fundo, com umas piranhas de dentes agucados dentro, arame farpado electrificado 'a volta e mercenarios de fora para abater algum que consiga rastejar para fora. Isto no optimismo de que nao estejamos na mesma aldeia que eles. Nao estamos, pois nao?

quarta-feira

Fartura



de Kodenko.

Tenho um amigo polaco e conversar com ele é partilhar experiencias em duas esferas: a religiosa e a do choque materialista. Ele é um ateu polaco nascido de ateus, o que imagino seja raro evento. Portanto, ele ve o forte fervor religioso do país dele do lado de fora e eu por vezes pareço estar a traduzir-lhe significados, como alguém que cresceu dentro do fenómeno. Por outro lado, ele conta-me do choque de fartura que foi quando chegou á Alemanha. Ele continua a comer gelado como se os cavaleiros do apocalipse viessem em cavalgada suprasónica em nosso encontro. Eu conto-lhe da emocao dos chocolates enviados pelos parentes emigrados. Ambos crescemos pobres e eu vi a fartura a instalar-se na minha familia atraves dos meus irmaos, ele ve a abundancia conseguida na sua vinda para a Alemanha e ve agora as mudanças no país dele. Ambos vivenciamos o choque da fartura. Sempre vi no triste novo-riquismo portugues, uma contra-reaccao ao passado miseravel, que demorará algumas décadas a desanuviar. Quando vim para a Alemanha, parentes meus perguntaram-me se os alemaes continuavam a por a mobilia na rua. Pelo que entendi, todos os anos, em dias firmados as pessoas punham tudo na rua, como se para eles a grande limpeza, aquela que nos poe a limpar as teias de aranha nos reconditos, encima de cadeiras a tentar chegar aos excrementos sedimentados dos insectos e dos insectivoros, a esfregar de quatro com oleos cancerigenos o chao encardido e riscado, a por cremes protectores nos moveis, a esfregar superficies reluzentes para que nos reflictam devidamente a cara destorcida, significasse para eles mudar o recheio da casa. Para os imigrantes era uma espécie de Natal, em que podiam mobilar a casa de graça com peças praticamente novas. A forma como me descreviam a fartura dos mercados poderá ter sido hiperbolizada, mas parecia-me tudo mais como Portugal de hoje, do que como a Alemanha de hoje. Na verdade, quando cheguei 'a Alemanha e entrei num supermercado, pensei que estava na zona leste. Hoje os alemaes ja' nao poem os moveis na rua. Revendem-nos. O desporto é comprar, comprar muito, mas bagatelas. As feiras de velharias multiplicam-se e a ebay é uma mania. Comparar preços e trocar informacoes sobre formas de obter o mais possível do menos possível pode encher várias horas de conversaçao. Parece uma especie de contra-cultura, com as suas caras excepcoes: neste momento, normalmente a comecar com um i. A nao ser que se seja velhote, em que deve ainda comecar com um vrrrmmmmmm. Por falar em carros: no outro dia estavam tres homens junto a um carro, tinham posto uma toalha sobre o capot e faziam um piquenique. Foi o choque. Parece que por aqui usar um carro como mesa e' crime lesa-majestade.

sexta-feira

Sacos de plástico

Um ano comecou de aluviao. Quando as aguas já tinham assentado, apanhei o comboio para Sul. Perto de Coimbra, o comboio amainou e pelas janelas o céu era de chumbo e prata, a água espalhava-se aos pés da ponte e as árvores mostravam nos ramos decoracoes que lembravam o Natal, talvez por aproximacao temporal ou preconceito ideologico. Sacos de plástico. A paisagem era muito bela: os campos inundados e o céu incrível reflectido nas águas. Os plásticos entornavam incongruencia. Dei-me conta que havia turistas estrangeiros na minha carruagem, que tiravam fotografias com a ansia da captura. No filme "Auf der anderen Seite", um personagem senta-se á beira-mar, só se ouve o quebrar das ondas. Permanecemos minutos, vários, ele a olhar o mar, á espera de alguém e nós a olhá-lo a ele e ao mar e á história que acabamos de ver. Daí vem do lado esquerdo a rebolar um saco de plástico. A incongruencia provocou risos na sala.

Mas haverá paisagem moderna que para ser congruente possa nao ter um saco de plastico?

Na Alemanha, o normal é pagar os sacos de plástico. Há mercados por todo o lado, coisas tipo Lidl ou melhor, mercadinhos turcos, e as pessoas vao de cestos de verga, de mochilas, de sacos de pano e compram pequenas quantidades. É até normal saltar de mini para mini, porque num vendem isto, mas naquele vendem aquilo. Mesmo quando sao grátis, eu nao aceito sacos de plástico. Nos EUA tive a impressao que acabaram por me conhecer no hipermercado, pela minha recusa de usar sacos de plástico, pois a certa altura já dispunham os artigos sem os meter nos sacos como faziam com os outros clientes. Quantidades enormes de sacos, por vezes um item por saco, como em Portugal (nao se pode juntar o azeite ao shampoo, senao sabe-se lá que criatura hedionda surgirá do contacto). Estais tao mal habituados que mete impressao.

quinta-feira

Mal educado

Vi umas imagens daquela conferencia que fizeram num sitio chamado Anapolis (deve ter consoantes dobradas, mas que se lixe), aquela para exactamente fazer imagens e o expectavel aparece tao obvio que ate quem espera fica espantado. Por amor de deus, nao se podia, sei la', fingir melhor? O Bush aparece em todas as imagens mais chegadinho ao Elmut e a falar com o Elmut e a mostrar coisas ao Elmut, enquanto o Abas e' um enjeitado que anda ali, claramente a reboque. Eu ate' me comiserei pelo presidente palestiniano. Fosgas para o Bush, que para la' de todos os defeitos mortais, e' um patifezeco mal-educado.

quarta-feira

O Pedro Arroja e a minha avó

Na minha santa ignorancia pensava eu que o preconceito era fruto da ignorancia. Pessoas que nao tinham sido habituadas a pensar ou que nao estavam para isso. Pessoas provincianas, limitadas aos seus pequenos espacos de preconceito nao questionado. O que sao foi-lhes completamente inculcado. Entrou-lhes em passiva condescendencia. Mentalidade de grupo, incapacidade de empatia, de ir para la'.

Santa ignorancia. Calma ignorancia. Com esta ignorancia uma pessoa pensa que quanto mais as pessoas sao educadas, menos preconceitos existirao. Pimbas, levamos com os intelectuais do preconceito. Ha' pessoas que pensam o preconceito, que o tentam fundamentar e que lhe providenciam pontos positivos. Sem preconceito sairiamos nus 'a rua. Estamos sempre a aprender. Pessoas que loam os valores individuais numa sociedade com pouco estado, loam tambem os valores colectivos de opressao social, em que todos unidos nos preconceitos dos nossos antepassados fazemos desta uma melhor sociedade. Eu leio e nao acredito. E' claro que para este homem o Andre' Azevedo Alves e' uma boa pessoa. Afinal escreveu 50% da teoria 'isto e' meu e tira a pata' em Portugal. So' falta escrever a segunda parte da teoria liberal: 'o meu teratetravo' tinha razao: os bons maricas comem e calam'. O Joao Miranda pode juntar o apendice: 'A minha avo nao me abortou: liberalismo e sapiencia'.

segunda-feira

O rei vai nú

O Tiago Mendes devia ter escrito como criança, pois livrava-se do ataque (para exemplo: o Pedro Arroja e o Joao Miranda e um senhor chamado RAF, que saiu do Atlantico, onde isto anda a ferver).

O que eu gosto desta história é que parece que tudo começou com o politicamente correcto: aquela crónica alienada do JFV (onde é que ele viu pessoas perseguidas ou vigiadas ou sequer olhadas de lado, lá fora no mundo real portugues, por chamarem alguém paneleiro ou maricas? gostava de saber onde é o microcosmos.), que foi excelentemente rebatida pelo Daniel Oliveira.

Sendo que o André Azevedo Alves e os seus defensores sempre clamaram contra o PC, pela suposta liberdade de chamar as coisas pelo nome, acho piada que agora nos venham dizer que afinal o AAA é minoria protegida por esse mesmo canone.

P.S.: Ja' agora, os defensores que nomeei nao dizem que o AAA nao e' a pessoa descrita no poste do Tiago Mendes. O que eles dizem e' que o AAA e' uma pessoa de bem, expressao que eu ja' vi colada a homens que batem nas mulheres e que roubam o estado, que o que o Tiago Gomes faz e' um ataque ad hominem, como se o que aparece escrito e defendido nos postes do AAA, nao tivesse o AAA por tras, e porque estamos a falar do Pedro Arroja e do Joao Miranda, como se tudo se pudesse dizer se for sempre atraves da generalizacao. Tudo estaria bem se o Tiago Mendes nao pusesse um nome, mas se amalgamasse esse nome num grupo. O Tiago Gomes poderia criticar todos os liberais ou todos os Andres. O ataque ad grupem e' actividade consentida. Ou, se o Tiago Gomes fosse educado, devia ter-se pronunciado em privado. O RAF, por seu lado, saiu do blogue Atlantico, o que e' direito dele, nao havendo nada a apontar.

quinta-feira

Belleville e Persépolis

Eu adoro desenhos animados. Gosto mesmo imenso. Para dizer a verdade, gosto de desenhos em todos os estádios de movimento, incluindo o parado. Nas últimas semanas vi dois filmes amáveis ao último nível de paixao.

Um, eu merecia ser chicoteada num qualquer país islamo-barbárico, porque já é velho de 4 anos e eu em estado de virgem ignorancia (atentem no paradoxo de ser chicoteada por islamo-fundamentalistas por ser virgem... É como o filme: atentar os pormenores). O enredo é imprevisível e onírico. O desenho surpreendente, extremo, sedutor. Há um personagem que me lembra a caricatura do Paulo Portas. Esse extremo. As personagens sao bidimensionais ou até mesmo unidimensionais. Mas na sua simplicidade de intencoes sao irresistiveis. O filme comeca com a avo afazendo-se em adivinhar os desejos do neto para lhe apaziguar a tristeza (algo com os pais ausentes?) e na continuacao do filme a persistencia com que ela persegue o bem estar do neto, é de nos levar a adoptá-la. Mas o desenho, o desenho, a extravagancia do traco, a musica, a musica com o desenho. O filme nao transtorna nada a razao, mas é um absoluto prazer. Estao a ver ali embaixo o barco e a avózinha? É o antes da melhor cena animada de todos os tempos. Além disso, a avó chama-se Souza. Por nada. :)


O segundo filme é de agora e há os livros. É baseado em Persépolis. O estilo de desenho é o mesmo dos livros e de novo há a avó que se ama (choro com jasmim). É a história verdadeira de Marjane Satrapi a crescer, neste caso crescer iraniana durante a queda do Xá, a tomada pelos fundamentalistas religiosos, da guerra com o Iraque, de ser parte da diáspora. De novo, o desenho é fabuloso, aqui o enredo e' fundamental e o desenho salienta-o, nos seus contrastes agucados de preto e branco, sobreposicoes e nas suas excepcoes de movimento e cor, que demarcam as narracoes.



Dois filmes muito diferentes, mas ambos imprescindíveis para quem gosta de beleza animada.

quarta-feira

Surfar

Muitos dos blogues que visito nao se encontram na minha barra lateral. Nao é que eu queira esconder o facto que os visito, mas porque estao enquadrados no passeio que geralmente é o meu ler de blogues. Há até um par de blogues que estao ali para que eu nao os esqueca. Visito-os de vez em quando, mas quero ser relembrada desse de vez em quando. Há outro par que encontrei há pouco e ando a ver se gosto. Há outro par que irei apagar, um porque estou a entrar nele por outros blogue, outro porque já perdi qualquer interesse. E há os constantes pontos de partida.

Assim, exemplificando, eu visito a partir do dois dedos de conversa, o quase em portugues e o tempo dos assassinos. A partir do blogo existo eu visito o da literatura, a natureza do mal e o a causa foi modificada desde que o maradona mudou de posto e eu nao tenho tido pachorra para mudar a morada. Provavelmente, agora que já firmei rotina, vou-o eliminar da barra lateral e por (com chapéu) outros.

Porque conto isto? Primeiro: para asseverar que as barras laterais nao sao sempre afirmacoes "politicas" ou definicoes completas de "gostos". Podem ser tambem um instrumento para o bloguista surfar na net, como é o meu caso. Segundo: (e cheguei ao destino final) os bloguistas deviam ter em atencao a sua entidade passageira e fazer o surfar mais fácil. É uma chatice aqueles blogues que nao tem ligacoes para continuar na onda. Também é chato aqueles que abrem novas janelas, porque temos de fazer uma pausa de vez em quando para as fechar. Ok?

sexta-feira

Sem título

Queria falar-te, mas nao sei que diga
Nao quero estragar este momento a tentar o sol e a vomitar a luz da rua.
Por isso calo-me e toco-te
mas como(?) uma festa que seja mais que um coçar de comichao.
Podia tentar um beijo, mas quantos me sairam tortos a raspar-te pelo nariz?
Podia ser na parte de trás do pescoço se nao fosse as codeas em massa folhada.
Podia ser um doce comprado na pastelaria da esquina, ahhh, mas as maos sujas do empregado...
Sinceramente, és difícil de amar!

quinta-feira

Há banda sonora para tudo

Quando tinha quatro anos I fell and bumped my head, o que levou a certos episódios com piada que ainda hoje por vezes se introduzem em sonhos e me fazem rir. Estava a explicar isto a uma pessoa que se interessa pelos meus sonhos, a bifurcar por meandros de significado, quando a pessoa se levantou e colocou esta música. Eu parti-me a rir e disse: "Há banda sonora para tudo!"

quarta-feira

Sem meio

Tenho-me desleixado na actividade mais importante de um blogador: citar o que os outros dizem, fazendo-o nosso. Pode ser porque queremos chamar a atençao, porque queremos discordar, comentar ou porque concordamos tanto, tanto que dói.

Aqui fica: "Dá ideia que Portugal oscila entre o doutorado e o analfabeto. Falta aqui um estado intermédio, entre a mera sobrevivência e a grande teoria capaz de colocar Portugal no futuro distante, que nos permita perceber o que é prático e útil em cada momento."

Quando andava no liceu, chegava-se ao nono ano (se se chegasse) e ia-se trabalhar e aprender o mister a fazer. Os que continuavam a estudar era para ir para a Universidade. Ninguém nos perguntou se queriamos aprender a fazer, o que me leva a pensar que nao havia/há escolas profissionais. Aprender a ser mecanico, a ser costureira, a ser trolha, a medir o pH da água. Aprender a fazer, em vez de só aprender termodinamica, a revolucao industrial, a fisica de Newton, os átomos e pensar no assunto. Uma vez passei os olhos pelo programa de um curso num politécnico. É uma cópia mal-amanhada da Universidade. Uma pessoa sabe que devido aos níveis educacionais do antes do 25 de Abril, houve/há o culto do senhor doutor. Este senhor doutor nao faz, pensa, planeia. Agora Portugal é o país de pessoas que nao sabem fazer e pessoas que planeiam e estudam, mas nao fazem (e provavelmente sabem como fazer, mas nao fazer). Portanto, o que é feito, é mal-feito, mas há muitos estudos de como fazer. Há algo na minha teoria que nao encaixa: porque é que nao há filósofos portugueses? Sou distraída ou a filosofia é afinal uma disciplina prática?

terça-feira

Crying gap

Uma crianca a chorar obtem de mim uma avaliacao objectiva de necessidades em caso de estar ao meu cargo ou um suspiro de tédio no outro caso. Uma mulher a chorar obtem de mim, na primeira reaccao, desconfianca, pois tenho este preconceito de que as mulheres sao descontroladas e histericas. Um homem a chorar derrete-me. Um avozinho de barba branca a chorar consegue qualquer coisa de mim. E' por isso que tenho medo do Pai Natal.

domingo

Porcalhice

Estou-me aqui a rir com os postes sobre a ASAE fechar um boteco qualquer em Lisboa. Tanto o que tem pena de nao poder entrar num estabelecimento em que os pes se lhe colem ao chao, como ao que grita salmonelas. O que chora a alma portuguesa da taberna encardida e o que acha que a alma portuguesa devia ser sermos menos portugueses. Os portugueses tem uma certa piada, pois sao paranoicamente limpos em certas coisas e hiper-porcos em outras. As coisas em que sao limpos sao eles proprios. Tudo o que e' compartilhado com os outros pode descer 'a pocilga. Assim, um senhor a cheirar a alfazema pode sem problemas entrar num restaurante a tresandar a oleo rancoso e a harmonia do seu estomago nao se descompoe. Vao nos seus carros reluzentes a atirar lixo pela janela. A vivenda e' vizinha do entulho. Um corredor todo aparelhado na seccao desporto do centro comercial corre ao longo do engarrafamento. Nao sei bem como, mas as pessoas parecem viver na ilusao de viver em bolhas de limpeza. Por muita merda que atirem para fora, a merda nunca lhes ira' resvalar para dentro da bolha. Por falar nisso, preciso de tomar banho.

segunda-feira

Assombraçao

No Verao dos meus doze ou treze anos, o acaso dos meus olhos nos livros acomodados na estante escolheram duas obras que me lançaram numa quebra entre o antes e o depois. Uma era um conjunto de pesados tomos que me custaram a desalojar da prateleira mais alta sobre a segunda guerra mundial e que certamente me puseram em risco de queda e fracturas. A segunda era também um conjunto de vários volumes, mas mais leves, de "O Judeu" de Camilo Castelo Branco. Esta foi a partida para a descoberta da maldade humana e a descoberta da maldade humana na religiao que os meus pais me deram de herança. Nessa altura, a religiao era uma parte fundamental de mim. Além disso, era muito jovem e o que li foi chocante ao ponto de traumatizante. Nesse Verao, deu-se o início do meu abandono do catolicismo, porque acabei por sentir impossível a pertença a uma organizaçao com tal marca. Porque os padres que questionei deram-me respostas mesquinhas, porque enfim, nao havia qualquer razao para me sujar. Era repulsa o que sentia e olhando para trás nao sei quanto sangrou a minha ingenuidade. Os meus pais tomaram este resultado como o primeiro sinal da adolescencia. Rebeldia sem causa, devem ter pensado.

A minha ideia de Deus confundiu-se. Surgiu-me a questao que provavelmente chega a todos: como é que Deus deixa acontecer barbaridades? Mas largar Deus era um mergulho na escuridao e deixei-me viver na angústia. Mais tarde comecei a ler a Biblia e a descoberta nua e crua do Antigo Testamento irremediavelmente me lançou também fora da esfera daquele Deus. Era um Deus criado á imagem do Homem. Tudo começou nesse Verao, em que descobri que um povo que julgava da Biblia, que já nao existia, nao por violencia, mas por mudanças nominativas, assim como os fariseus e os canaenses, que esse povo ainda existia e que catástrofes inomináveis tinham submergido esse povo e com eles a minha ideia de e da humanidade e a minha religiao.

Assim, quando na blogosfera perguntam porque nos preocupamos tanto com Israel e os israelitas e nao tanto com os sudaneses ou os arménios, penso que nem tudo é explicado por anti-semitismo. O povo judeu está marcado na consciencia dos europeus a fogo e morte. O judaísmo é o pai do cristianismo. A Europa é a mae de Israel. O estranho seria que os judeus e Israel nao fossem uma presença marcada na consciencia dos europeus.

quinta-feira

Suspiros de cigarro



Beautiful Obsession 2003
Acrylic and ink on paper
Trine Boesen


O sol passa-me por cima em mortalha luminosa. O fumo do cigarro brinca com o pó transcendente, sobe levando os meus suspiros. Cada lufada um transbordo num mundo de fadas que dançam o sol e a brisa. Outro suspiro sobe e encontra-se com o anterior. Assisto a uma representaçao feita de leveza e luz, feita por mim e um astro. A música que chega quase me faz acreditar em algo mais que esta subtileza mínima. Que quando eu abandonar este espaço algo acontecerá para lá das leis da física que eu poetizo. Queria ser tao simplesmente bela quanto parece o mundo que vejo e sinto. A minha complexidade pesa-me.

terça-feira

quarta-feira

O peixe-miúdo da ciencia é muito miúdinho

Há situaçoes na lei alema, em que apesar de nao se fazer descontos para a segurança social, o tempo é contado para definir o momento em que uma pessoa se pode reformar. Assim, na Alemanha, o tempo passado numa prisao conta, mas o tempo passado com uma bolsa, nao. Isto vai sem expletivos. A minha indignaçao está muda.

terça-feira

As limitaçoes do ensino público

Nao sei bem o que mostra do sistema de ensino portugues: saboreei convenientemente esta cena do "Life of Brian" dos Monthy Phyton depois de ter começado a aprender alemao. O que é que se anda a fazer na escola se nao nos preparam para perceber, em camadas de significado, as piadas dos filmes? Hee?

segunda-feira

A faca com que o Manel matou o Henrique era da Maria

A língua alemã tem quatro casos, o que significa que existe a declinação de substantivos, adjectivos e artigos (e talvez outras coisas que me passaram ao lado) conforme quatro situações gramaticais: quando definimos a coisa, quando algo pertence à coisa, quando a coisa faz algo e quando algo é feito á coisa.

Na prática, para um estrangeiro como eu, uma frase como a do título em alemao é uma dor de cabeça, pois é-me dificil definir quem matou quem. Á primeira vou perceber que alguém morreu e que a faca teve um papel no crime. O humor alemão está-me vedado, pois o pessoal parou de rir, foi comer um gelado, veio e dormita no sofá, quando eu termino de consultar os meus apontamentos de alemão e estou pronta para perguntar: "Qual é a piada?". O alemão é uma língua em que facilmente estás na situação em que sabes exactamente o que todas as palavras de uma frase significam, mas a frase em si não se percebe. E daqui se pode ver como os alemaes sao: enquanto todos os outros que comecaram com o latim acharam que o melhor era esquecer a dificuldade dos casos, os alemaes deixaram estar a coisa, porque senao quem sabe, ainda se perdiam sem as regrazinhas. A primeira moral da história já devem saber, a segunda moral da história é: os alemaes planearam tudo há muito para que nao se goste deles.

sexta-feira

Uma folha do mil folhas

Estive a desfolhar a constituiçao virada tratado. Nao posso dizer muito. Estive numa parte cheia de vazio, estilo eu dizer "Sou pela felicidade das pessoas". Ainda bem para mim, mas ser pela felicidade das pessoas nao contribui um nico para a sua felicidade. Que perda de tempo. Mas aquele pessoal senta-se e o galo diz: Muito bem vindos. Blá, blá blá, palha, palha. Estamos aqui para escrever a constituiçao europeia e para nos começarmos a conhecer, iniciamos a escrita de inutilidades em que todos concordamos e prá semana começamos realmente a trabalhar. Palha, palha, palha. Pausa para o café.

terça-feira

Quando a gente ama

sequoia sempervirens

Uma sequóia é um extremo. Qualquer árvore é um marco que só nao emociona as pessoas porque as pessoas sao intrinsecamente estupidas. Mas uma sequoia é tao fora das dimensoes a que estamos habituados que até uma pessoa que para além de estúpida, cega e em coma sentirá que há algo diferente no ar*. Um manto a pingar água segurado por colunas. Um cheiro a água e verde e fresco. Caminhar numa floresta de sequóias é a magia natural de uma floresta, os sons de fundo abafados, espécie de ecos, a neblina trespassada por gotículas de água, o sol que de repente se derrama por entre a fresta de uma árvore caída. A atencao tem de ser constante. Tento ouvir um pássaro, a água no ribeiro transparente, talvez um mamífero a fugir pelos arbustos, um cogumelo de cores vibrantes a esconder-se, os meus passos no caminho curvilíneo. Há algo de prazentoso no caminhar na natureza que obviamente nos deve estar escrito nos genes. Uma floresta de sequóias tem as proporçoes de um sonho, provavelmente dá o tipo de deslumbramento que sentia o pobre campones a entrar numa catedral medieval, demonstrando-lhe em tal imensidao a grandeza de Deus na Terra. Uma sequóia possui a desfiguraçao da imaginacao. É quando a realidade é melhor que a fantasia.

* Causou-me uma certa impressao as pessoas que observei na entrada do parque, que penetraram uns passos, tiraram umas fotografias, compraram parvalhices carissimas na loja de recordacoes e foram embora. Se isto nao é estupidez nao sei em que usar o adjectivo estúpido. Mas por outro lado, se nao houvesse muitos estúpidos, a floresta propriamente dita teria de ser interdita a todos. Por outro lado se nao houvesse muitos estúpidos, talvez houvesse mais florestas. Epá, isto dá para um livro: stupidity for dummies.

sexta-feira

Sumidades

Ha' aquelas ideias que nem que sejam negadas com um martelo na testa das pessoas, elas continuam na delas. Por mais que os turistas vao a Paris, continuam a chamar a cidade de Cidade da Luz ou do Amor. Porque? Por nada, porque os parisienses comecaram com essas bacoradas e colou. Nao ha' evidencia que pare com a mentira que e' chamar Paris Cidade da Luz ou do Amor. O que e' preciso e' marquetar. Tipo o Freud foi um grande pensador. Foi um tarado a impor as suas taradices nos outros, mas nao ha' cronologia do seculo vinte que nao tenha la' as suas ventas como mestre do pensar. Ou que os homens nao fofocam. Essa e' do melhor. Eu queria que me pagassem um centimo por frase de fofoquice esparramada entre homens. Seria a mulher mais rica do mundo, ao ponto de poder nomear o Presidente dos EUA (yep, neste pais compra-se tudo).

Nao sei de onde me veio isto tudo, mas amanha vou apanhar outro aviao e da-me para estas sumidades.

quinta-feira

Hoje liguei a televisao ao pequeno-almoco

Segundo percebi os EUA estao a ser conquistados por homossexuais e mexicanos. Tambem houve bastante conversa sobre sexo. Pareceu-me um pouco rude falarem de sexo tao cedo.

quarta-feira

Gastronomia em Boulder

A maior parte dos restaurantes alardeiam que sao tipicos, tradicionalmente italianos, classicamente americanos, a unica casa-de-cha autenticamente persa no hemisfero ocidental, tipicamente franceses e por ai' fora. Felizmente eles oferecem uma mistura de influencias que tornam uma ida a um restaurante uma experiencia surpreendente, deliciosa e sempre generosa. A unica coisa que fabricam com a sua publicidade e' a desilusao dos seus compatriotas quando visitam o estrangeiro.

terça-feira

Livre expressao



de Michael Kountouris

Cuidado: este poste e' curto

Tendo em atencao o conteudo dos avisos que vou lendo por ai', hoje quando vi um letreiro junto a uma piscina aproximei-me para verificar se algum dos itens era: "Beware wet inside the pool" ou ate', quica, "Water impairs breathing".

segunda-feira

Snapshot

Perguntem-me: como e' um pequeno-almoco ajantarado num suburbio americano com uma data de mulheres acima dos 50 e sem homem que lhes ocupe tempo? Falaram sobre:
1) renovacoes na casa, azulejos, tintas, apliques, etc.
2) os "dates"
3) politica, incluindo o que me deixa admirativa: o voluntariado que fazem para apoiar os seus candidatos.

No ano passado foi o mesmo. Acho que e' mesmo assim.

A comida precisava de sal e menos cabelos. De resto foi interessante.

domingo

Os americanos coloradorenses

Ah, deixem-me resmungar mais um bocado, agora armando-me em antropologa.

Do meu posto de arrogancia europeia, eu classifico os americanos que vejo em tres tipos, simplificando o complexo como e' apanagio do olho cientifico. Assim,

1) o homo auto-cus;
2) o homo-sportie-em-formus e o homo-yuppie-em-formus;
3) o homo-auto-cu-sonha-formus.

O homo auto-cus nao e' um ser erecto. O seu habitat natural e' o carro. E' um ser extremanente aventureiro que frequentemente entra em habitats estranhos em que tem de adquirir o estado erecto, como seja um supermercado ou um centro comercial. Contudo, rapidamente retorna ao seu habitat natural ou similares, como seja o sofa ou a cama. Este ser come no carro, telefona do carro, levanta dinheiro no carro, percorre a minima distancia com o carro, copula no carro, em cidades construidas para que ele possa ocupar o seu habitat natural o maximo tempo possivel.

Os homos do ponto 2 sao seres que vivem para o estar em forma. A diferenca entre o homo-sportie-em-formus e o homo-yuppie-em-formus e' que o primeiro fa-lo ao ar livre, correndo, ciclando, subindo, descendo, escalando, tudo o que lhes aparece 'a frente. Os segundos preferem faze-lo num ginasio. Preocupam-se em comer saudavel, o que os coloca par-a-par com coelhos que tambem comem hamburgueres. [Por falar em coelhos: este pessoal nao come coelhos. Acham-nos demasiadamente giros. Cada vez que vejo um coelho aos pinotes a passar pelo meu caminho fico triste com o desperdicio.]

Finalmente, o mais querido deles todos e' o homo-auto-cu-sonha-formus. Este ser tem uma vida muito parecida com os homo auto-cus, contudo, por vezes tentam praticar exercicio como os homos-em-formus. Sao seres altamente divertidos quando tentam ocupar o nicho que nao lhes pertence. Sao o grupo-alvo dos produtores de comida saudavel, caloria-zero, maquinetas que derretem gordura enquanto pedalam uma bicicleta que vai a lado nenhum e veem a novela das seis. Entram em qualquer esquema que lhes prometa viver em forma, pagam qualquer dinheiro por qualquer mistela feita de algas japonesas que os fara' ser saudaveis como os homos-formus, sem que tenham que fazer o regime de exercicio que estes fazem. Sao uns seres sonhadores, com o frigorifico empalado de vitaminas, o armario a abarrotar de especiarias que compram quando pensam em cozinhar em vez de comer comida congelada, mas que acabam por nunca usar, a cave cheia de brinquedos esquisitos que lhes treme a gordura em excesso.

quinta-feira

Portugal e o Pais Basco: the connection

Eu primeiro achei que o americano em questao tinha confundido a Peninsula Iberica, mas agora ja' nao sei. Dois anos consecutivos, duas pessoas diferentes, quando digo que sou de Portugal, perguntam-me pelo pais Basco. Foi um filme, um documentario, e' na escola?

quarta-feira

Ontem 'a noite passei por estes tres.




Politicamente incorrecta como sou, eles passaram por mim a correr. E' dificil ser diferente nas terras do tio sam.

sexta-feira

Porque e' que as mulheres se dao melhor com os homens?

Ou dizem isso. Por muito que as mulheres elogiem os homens e cortem na casaca das outras mulheres, as mulheres gostam dos homens quando sao heterossexuais. Tem muito mais piada ter homens 'a volta, porque sao homens e ha' aquele frisson. Nao e' porque eles sao mais pacientes e menos fofoqueiros e mais divertidos e tem uma visao mais alargada da vida e sao menos triquentos. Eles sao mais faceis porque as mulheres estao sintonizadas para ter maior paciencia com todos os seus defeitos. Eles podem ser muito piores que uma mulher aos nossos olhos, porque eles estao noutro dominio de avaliacao. Por isso gajas, parem de elogiar gajos. Isso e' so' as vossas hormonazinhas a falar. Eles sao tao odiaveis quanto as mulheres, mas enfim, tem algo que nenhuma mulher tem. E faz muita diferenca.

quinta-feira

quarta-feira

DE mestre

Tiro o meu chapéu 'a EDP. Usar o Protocolo de Quioto como argumento recauchutado para o Sabor é genial. Os ambientalistas vao parecer uns tolos, nao tem que se fazer nenhum estudo a demonstrar nada, porque compromissos com a Europa, sao compromissos, mesmo que na prática, fazendo todas as continhas, contribuo mais eu para o Protocolo de Quioto quando nao peido durante um mes. Mas esses negócios da China nao andam a dar certo? Mesmo com vergonhas como as do Dalai Lama? É um bocado triste nao acham? Dobrar a espinha só para levarem um pontapé no cu? Digo eu.

Instruçao

Vou para os EUA com um colega. Ele perguntou-me se eu me importava que fossemos juntos no aviao, eu disse que nao, que podiamos fazer a entrega das malas juntos. Conversamos sobre os livros que escolhemos para nos acompanhar e ele ficou um pouco surpreso com o meu " Secrets Of Women: Gender, Generation, and the Origins of Human Dissection". Depois instruí-o sobre que lugares pedir, com base numa entrevista que lhe mostrei, a um analista de acidentes aeronáuticos. Agora ele passa por mim no corredor muito encostadinho 'a parede. A gota de água deve ter sido quando lhe expliquei com pormenores o que acontece ao corpo humano quando cai de uma altitude de tres quilometros.

Momento alto do dia

Desmaiar de sono.

terça-feira

Hoje proclamo o primeiro de abril

é só porque encontrei uma loja de sabonetes que os faz tal e qual como chocolates e bolos e bolinhos e tortas... como me vou divertir....

Uns plágios com pernas

Somos todos espelhos uns dos outros, com a mania que somos originais ou melhores.

Do outro lado


Este filme ganhou o prémio ecuménico do Festival de Cannes. Depois de ver o filme, faz todo o sentido. O ecumenismo é interessante, pois representa uma desaprendizagem que o ser humano constrói com a cultura. Aprendemos a construir barreiras. Depois fazem filmes que mostram o óbvio. E nós choramos nos laços que se constroiem e destroem, pois sao retratos de pessoas a perder e a ganhar e sao exactamente como nós e nós como eles e amamos exactamente da mesma forma e nao se entende que se esqueça tal conceito e que sejam necessários prémios ecuménicos. Ecumenismo 'a parte, o filme é belo, dum belo simples de cor sem mácula. A cor do sol ou da lua, a emocao de um beijo, uma face lavada com lágrimas. Oh sim, eu chorei. Já nao chorava assim desde o "Alice".

Fico eu tambem na praia a olhar para o outro lado, na conjunçao do mar e da terra, dois lados do mesmo sítio. De cada lado do beijo, duas mulheres, dois lugares, um amor. Do outro lado, é somente o complemento do nosso lado, igual e diferente. E isto é tudo batido, mas fazem-se filmes e dao-se prémios sobre a claridade do que nao se ve. Estranho.

segunda-feira

Contaminada

O que eu acho mais incrível é a polícia-de-choque me por a falar de esquerda e direita da forma como escrevi, numa guerrinha de manifestacoes sem as ideias por baixo. Só por isto nao lhes perdoo. Será que posso votar nas eleicoes de Outubro? Já vou analisar isto e votar no tipo mais anti-polícia que houver.

P.S.: Nao lhes mando um molotov da proxima que os vir porque sou pacifista, além de cobarde.

terça-feira

O nivel informativo

Um amigo perguntou-me o que eu achava do caso Madeleine.
Eu respondi que nao tinha a minima ideia, mas que parecia que a imprensa portuguesa se andava a portar muito mal, assim como se ele me tivesse perguntado sobre os meus sobrinhos. "E tu?"
"Nada tambem, mas nao sei, acho que nao confio nos pais."

Mudei de assunto. Mal por mal, escuro no escuro, rumor por rumor, ignorancia por ignorancia, prefiro falar de terroristas. E' menos personalizado.

quinta-feira

Os americanos sao um fartote

Nos Estados Unidos chamam 'as secretarias assistentes executivos.

As mulheres e a macrocultura

(...) Creativity may be another example of gender difference in motivation rather than ability. The evidence presents a seeming paradox, because the tests of creativity generally show men and women scoring about the same, yet through history some men have been much more creative than women. An explanation that fits this pattern is that men and women have the same creative ability but different motivations.

(...)

In the 19th century in America, middle-class girls and women played piano far more than men. Yet all that piano playing failed to result in any creative output. There were no great women composers, no new directions in style of music or how to play, or anything like that. All those female pianists entertained their families and their dinner guests but did not seem motivated to create anything new.

Meanwhile, at about the same time, black men in America created blues and then jazz, both of which changed the way the world experiences music. By any measure, those black men, mostly just emerging from slavery, were far more disadvantaged than the middle-class white women. Even getting their hands on a musical instrument must have been considerably harder. And remember, I’m saying that the creative abilities are probably about equal. But somehow the men were driven to create something new, more than the women.(...)

terça-feira

Crescer

Devo andar coisa menos coisa pelo meio da minha vida. Olho para trás e miro enternecida, envergonhada, espantada, os disparates em que acreditei, os medos que fomentei, os enigmas que desvelei muito tarde. Olho-me neste ponto e pergunto-me o tanto que esquecerei, os erros que remarcarei, o que finalmente aprenderei, esperando com imensa esperanca que seja capaz de alguma forma de ser melhor. Mas olho ao lado os outros adultos e as nódoas que ornamentam, mais fáceis de ver que em mim, e desespero. Tanta gente que nao aprende e é infantil ao ponto de anedota aos trinta, quarenta anos. Poderei eu ser diferente?

segunda-feira

Também me meti na junk movie

Fui com uns amigos ver um filme de acçao. Fui porque era de acçao e porque era dobrado em alemao. Assim, posso praticar a língua e pelo meio relaxo os neurónios a ver a batatada. Nao sabia nada do filme, mas o cartaz tinha pinta. Era o típico filme de acçao de hollywood. Muitos carros rechaçados, um argumento de lástima e um mau que é bom, porque se virou contra os maus do sistema e os bons do sistema sao bons, porque trabalham para o axis do bem. Essas merdas. Felizmente nao havia cenas sobre o islamofacismo, que já basta as notícias reais. O filme acaba e eu de cima da minha douta opiniao digo: "Veem, já se tao a preparar para a sequela. Ide pelas minhas palavras: vai haver o 2, o 3, o 4..." Fui entao informada que tinha acabado de assistir 'a sequela numero 3.

Esbanjamento de boa junk book

Estando eu em vias de me meter num aviao durante largas horas, acabei de esbanjar um bom livro para passar essas horas de desterro altitudinal. Sorvi-o todo num fim-de-semana de analgesia. Pergunto-me depois do disparate, porque fiz eu aquilo. O que me levou a desgracar um bom fim-de-semana a ler aquele livro? O meu pessimismo? O meu masoquismo? O facto de ter um esqueleto a dancar o vira na capa? O facto de ser levezinho? O facto do homem tirar conclusoes erradas e forcadas que me faziam deliciar no exercicio silencioso de chamar o autor "ganda animal!"? Agora vou ter que atacar a amazon e arranjar outra porcaria para ler no aviao. A ver se chega mesmo antes do voo, que e' pra nao me amandar 'as batatas fritas antes do tempo.

quinta-feira

Já repararam...

... que quando digo que me vou embora é quando volto?

Bem dizia a minha mae: sou mesmo do contra.

Maravilhas

Estou aqui a tentar ser sociável pelo que vou tentar responder ao Joao e numerar as minhas sete maravilhas. Portanto, uma maravilha terá que ser algo que me deixou maravilhada ao ve-la. Eu nao sou muito viajada, sou distraidissima e tenho a memoria de uma lagarta, mas aqui vai:

1) o mar. Eu poderia passar horas a olhar, ouvir, cheirar e sentir o mar. Boa Deus, estavas inspirado.
2) No ano passado quando estive numa cidadezinha perto de Denver ficava boquiaberta com os céus. Nao sei se é de viver em Hamburgo, em que parece que o céu começa a poucos centimetros da nossa cabeça numa camada eterna de nuvens cinzentas, mas penso que é mais que isso. Todos os dias haviam esculturas 3D de nuvens absolutamente maravilhosas e o azul parecia mais profundo, quase um azul impossivel.
3) A capela sistina. Indescrítivel. Estive boquiaberta umas duas horas, pelo menos.
4) A Noruega. É lindissima a cada curva e nem é preciso muito trabalho a tentar enquadrar o bonito nas fotografias. Tudo é bonito e nada é feio. Acho que é preciso procurar intencionalmente os aterros do lixo. Pena os noruegueses.
5) A ria de Aveiro e a ria Formosa. Os melhores pores-do-sol que eu vi e entao numa barca quando o ceu esta' de chumbo, mas com flechas de sol a trespassar e a fazer reflexoes incriveis na superficie da água e ,e ,e .....
6) Amesterdao, Paris e Sao Petersburgo. A primeira é a minha preferida, porque pelo menos nao foi preciso escravizar o pessoal e sugar-lhes o sangue para construir as maravilhas arquitectonicas que Paris e Sao Petersburgo contem (e os lindos resultados que deu). Amesterdao é de uma beleza especial porque é simples, humana e cosmopolita. Ou seja, pode-se dizer que é uma cidade ergonómica que maravilha pelo bem estar que nos faz sentir.
7) Entrar em Estocolmo por mar. Além disso, constitui a prova que até as maravilhas quando duram cinco horas, aborrecem.

terça-feira

Recordes

Esta cena dos recordes está-se a tornar macadora. Todos os dias ha um recorde, e depois ha' aqueles recordes que sao ultrapassados todos os dias.

Hoje, 3 de Setembro de 2007, outro minimo na cobertura de gelo no Polo Norte. Nunca mais comeca o Inverno. E depois? Havera' outro recorde que os nossos satelites pronunciarao. E mais outro e mais outro e mais outro e mais outro...

segunda-feira

Vou-te mandar uma música




Perdoa-me
ah, se eu pudesse, se eu tivesse podido
juro-te, teria dado significado aos teus sonhos
ao sol que me levaste a ver
a palavras e tristezas
se eu tivesse podido ser menos os outros
se eu tivesse podido ser eu melhor
se pudessemos renascer noutro mundo
se pudessemos escolher o que somos
se pudessemos juntar sem cicatrizes
se o amor fosse tao feroz quanto a vida
eu poderia ter-te amado.

terça-feira

My dears

Que dizer amigos? Para lá da sensacao de inutilidade em mover qualquer restia de mim? Nao, nao, nao há qualquer problema em ter a total consciencia da minha inutilidade. É a realidade e sempre tive uma certa afeiçao pela realidade nua e crua. O caminho fica livre para a liberdade. Os tempos que correm nao me dizem nada. Sento-me a olhar para o peitoril da janela que contém os meus livros e sinto prazer em reve-los como amigos em fotografias. Fico assim longos tempos, sem passado ou futuro. Posta no presente, imovel no tempo e no espaço, com pouco para dizer, a saborear a minha mortalidade. Bem, talvez retorne ou nao. Por agora vou fumar um cigarro. Beijos.

quinta-feira

meto a mão em pó
e retiro-te de quando eras outro
quando o teu azul era só azul
ainda não oceano
a tua palidez era encardida
ainda não prateada
as tuas mãos despercebidas
ainda não sentidas
a tua boca ruminando sons
em vez de beijos
todo tu ordinário
metido num sudário fantasista
que dispo com as unhas
raspo com os dentes
esmago
desfrutando algo
algum momento, algum sentimento, algo
quicá, quem sabe, algo que vem em brisa
que cheira a podre
que morre ao redor.

segunda-feira

Sr. blogospectador

fazemos aqui um intervalo na programacao para anunciar:

fonte...


Está Verão!!!! A emoção é tanta que não sei se aguento.

sábado

quinta-feira

Povoam-me monstros


de Peter Hapak.

O que leva os seres-humanos a perpretar actos desumanos?

Existem duas correntes explicativas na sociopsicologia: as disposições individuais e as situações em que o indivíduo se encontra. Philip G. Zimbardo no seu livro “The Lucifer effect: understanding how good people turn evil” defende a segunda como a fundamental. Ele descreve a sua experiência de 1971, em que colocou 24 voluntários, todos eles considerados saudáveis e normais, todos eles estudantes universitários, numa situação de prisão, 12 actuando como guardas e 12 como prisioneiros. Nas entrevistas que foram realizadas previamente, todos eles tinham afirmado que prefeririam actuar como prisioneiros, pois não se imaginavam na situação de serem guardas, mas na cultura universitária do tempo, com as demonstrações anti-guerra, eles pensavam que poderiam ser presos e a experiência poderia ser-lhes útil. Supostamente a experiência deveria durar duas semanas. Durou 6 dias. Por esta altura os guardas tinham-se tornado agressivos e desumanos, obrigando os prisioneiros a punições degradantes e humilhantes, de tal forma, que vários tiveram de ser libertados e os que ficaram comportavam-se como zombies. Com base nesta experiência e outros casos exemplificativos ele defende que todos nós podemos na situação adequada tornarmo-nos “guardas”. Ele defende um processo de despersonalização e anonimatização, em que em ordem para a actuação como “guarda”, adquirimos para nós o papel de “guarda” entre “guardas”. Na despersonalização livramo-nos dos nossos próprios pruridos morais, na anonimatização adquirimos o senso de impunidade.

É assim?

O livro de Jean Hatzfeld, “Machete Season: The killers in Ruanda speak.” parece corroborar o situacianismo. No poste anterior, nomeadamente no testemunho de Pio, existia essa sensacão de arrastamento pela situação. Primeiro dia da matança:

Testemunho de Fulgence: No dia 11 de Abril, o juiz do Município em Kibungo enviou os seus mensageiros para juntar lá os Hutus. Montes de interahamwe* tinham chegado em autocarros e camiões, que seguiam pelas estradas buzinando e forçando caminho. Parecia um engarrafamento na cidade.

Lá o juiz disse a toda a gente que a partir daí não iriamos fazer outra coisa senão matar Tutsi. Bem, nós entendemos: aquilo era um plano final. A atmosfera tinha mudado.

Nesse dia, tipos mal informados tinham vindo sem trazerem uma machete ou outro instrumento para cortar. Os interahamwe repreenderam-nos: disseram-lhes que daquela vez passava, mas era melhor que não tornasse a acontecer. Disseram-lhes para se armarem com pedras e paus, para formar barreiras na retaguarda para cortar o caminho a fugitivos. A seguir, todos se juntaram em excitação a um líder ou aglomeraram seguidores, mas nunca mais ninguém esqueceu a sua machete.

Assim, com um historial antigo de demonização de Tutsi, com as autoridades a indicar o caminho (matar e somente matar), a despersonalização de assassino e do a assassinar parece que foi fácil. O ajuntamento excitado facilitou a anonimatização e a matança de 50 mil Tutsi num período de um mês tornou-se realidade.

E quanto às disposições individuais? Existindo pessoas que evitaram o assassinato, foram tão raras, que são extraordinárias. Os heróis são raridades.

Era perto do meio-dia do dia 11 de Abril, no primeiro dia da matança nos montes de Ntarama. Isidore Mahandago descansava de uma manhã de monda, sentado numa cadeira no terreiro da sua cabana. Ele era um camponês Hutu, de sessenta e cinco anos, que tinha chegado a Rugunga, no monte de Ntarama, vinte anos antes.

Uns tipos robustos, armados com machetes, passaram cantando pelo caminho junto à sua casa. Isidore chamou-os na sua voz velha e profunda e sermoneou-os na frente dos vizinhos: “Vós, jovens, sois malfeitores. Recuai e ide-vos. As lâminas das vossas machetes apontam na direcção da nossa tragédia. Não inflameis disputas demasiadamente perigosas para nós camponeses. Parai de atormentar os nossos vizinhos e retornai aos vossos campos.” Dois assassinos aproximaram-se dele, rindo-se, e sem palavras cortaram-no com as machetes. Entre o bando encontrava-se o filho de Isidore, que de acordo com testemunhas, não protestou nem parou para ver do pai. Os jovens continuaram o seu caminho cantando.

Isidore Mahandango é o Homem Justo de Ntarama.

Hatzfeld conta mais duas histórias, de cinco justos que foram assassinados. Mas escreve:

E os Justos ainda vivos, quem são e onde se encontram? Na verdade, depois de muitas visitas, de muito procurar, ainda não encontrei nenhum nos três montes de Kibungo, Ntarama e Kanzenze. Contudo, em vez, posso apontar outras pessoas merecedoras. Ibrahim Nsengiyumua, um comerciante próspero de Kibungo, pagou multa após multa ao ponto da ruína, para evitar participar na matança e nos saques. Ele fê-lo, explica Innocent [o guia Tutsi de Hatzfeld], “porque juntou suficiente riqueza para não arruinar a vida com sangue”.

Os merecedores também são poucos. E isto é o ser-humano.

* interahamwe – “Os que atacam juntos”: a milícia extremista Hutu criada pelo clã Habyarimana no início dos anos 90, treinada pelo exército ruandês e, por vezes, localmente, pelos soldados franceses.

Tradução minha do livro "Machete Season: The killers in Rwanda speak" a cor.

Quando se quer exterminar os outros


Andisheh Avini 2007
Installation View, I-20 Gallery, New York (February 20 - March 24, 2007) (Photo: Cary Whittier)


Estive a ler um livro sobre o genocídio no Ruanda: "Une saison de machettes" no original, mas eu li a edição americana. Consiste em entrevistas a um grupo de assassinos e apartes do autor. Este é um livro posterior a um outro, em que o autor, Jean Hatzfeld, entrevistou sobreviventes do massacre, livro este que pretendo ler também.

Obviamente que um primeiro passo ao ler este livro será entender o que é genocídio. Especialmente, quando esta é uma palavra usada sem discriminação, como hipérbole em hipérboles. O dicionário diz "destruição metódica de um grupo étnico, pela exterminação dos seus indivíduos." Jean dá uma definição que, para mim, contém o essencial elemento distintivo:

Será possível distinguir um genocídio entre o caos de uma guerra? A resposta (...) encontra-se noutra questão, simples e decisiva: quem são as vítimas de escolha?

Na guerra, os homens sāo mortos primeiro, porque eles sāo os mais prováveis na resposta armada; a seguir estão as mulheres que os poderão ajudar, os rapazes que irão tentar continuar o conflito e os velhos que podem dar conselhos de saber. Mas num genocídio, o assassino persegue todos, em particular bébés, raparigas e mulheres, porque elas representam o futuro.

Toda a envolvente de um genocídio sente-se irreal. Os que vemos à distância, queremos, imaginamos, esperamos, uma explicação que coloque o genocídio no domínio da loucura. Nós, os normais, não poderiamos ser assim. Doença colectiva que queremos compreender nos sintomas. No entanto aquelas pessoas são normais. A doença é humana e é o sentimento de pertença a uma tribo ou a uma nação (utilizando tribo para todas as associaçoes que nao sejam de estado: base religiosa, étnica, morfológica, tudo enfim em que a imaginaçao humana se baseia para criar linhas entre seres humanos).

Testemunho de Pio: No início de um genocídio existe uma causa, uma razão e pessoas que o acham vantajoso. A causa não chega por acaso; é afinada pelos intimidadores: o desejo de ganhar de vez o jogo. Contudo, as pessoas que são tentadas são as que por acaso vivem ali. Eu estava lá, em casa, quando a tentação veio chamar por mim. Eu não estou a dizer que fui forçado por Satanás ou algo assim. A ganância e a obediência levaram-me a achar a causa vantajosa e, assim, corri para os pântanos. Mas se eu tivesse nascido na Tanzânia ou na França, eu estaria longe da comoção e da sede por sangue.

Pessoas simples não podem resistir uma tentação como aquela, não sem a salvação da Biblia, pelo menos, não naqueles montes. Porquê? Por causa das maravilhosas palavras de sucesso total. Elas ganham-te. Depois a tentação não pode ir para a prisão, pelo que as pessoas são presas. E, mais à frente, a tentação pode reaparecer tão pavorosa quanto antes.

Quando alguém vê o seu melhor interesse vir na sua direcção e na dos seus colegas, essa pessoa não perde tempo à espera, a hesitar, essa pessoa já não considera sentimentos, já não ouve pedidos de piedade. Ele vê o Mal na forma do Bem e fica satisfeita. Ele pensa no que pode ganhar para si e para a sua família até ao fim dos seus dias. Ele segue o seu melhor interesse nos pântanos.

Depois, ele limpa-se da lama e do sangue e bebe uma cerveja. Isto foi o que eu fiz. Eu não nego a minha culpa. Mas eu sou, não só punido pelo meu erro, mas também pela minha má sorte.


O primeiro sintoma é a aceitação da linha de ruptura fictícia e a continuada malignização dos outros. Existe no domínio extremamente humano da incongruência. As pessoas conseguem e fazem-no automaticamente todos os dias: albergam duas ideias opostas dentro de si, sem racionalizarem a antítese.

Testemunho de Jean-Baptiste: Os Hutus sempre criticaram os Tutsi pela sua altura e por tentarem usar isto para mandar. O tempo nunca curou este rancor. Em Nyamata, como eu lhe disse, as pessoas diziam que as mulheres Tutsi pareciam demasiadamente magras para trabalharem nos nossos montes, que a pele delas era macia porque secretamente bebiam leite, que os seus dedos eram demasiadamente delicados para agarrar uma sachola e toda essa parvoíce.
Na verdade, os Hutus não viam nada disso nas mulheres Tutsi na sua vizinhança, que dobravam as costas lado-a-lado às mulheres Hutus e que iam buscar a água da mesma maneira. Contudo, os Hutus gostavam de repetir esta conversa. Também gostavam de dizer que um Hutu com uma mulher Tutsi era só para se armar, como no meu caso.
Eles tinham prazer em espalhar o mais inacreditável lixo para criar uma fina linha de discórdia entre os dois grupos étnicos. O importante era manter a distância entre os grupos e tentar agravar a situação. Por exemplo, no primeiro dia de escola, o professor tinha, ao chamar os alunos, de referir a origem étnica, de forma a que os Tutsi sentissem receio ao tomar os seus assentos numa classe de Hutus.
Testemunho de Pio: Talvez não odiássemos todos os Tutsi, especialmente não os nossos vizinhos e talvez não os víssemos a todos como inimigos. Mas entre nós diziamos que não queriamos viver mais com eles. Diziamos até que não os queriamos ver à nossa volta, que os queriamos fora da nossa terra. Dizer isto é grave - isto já é o aguçar da machete. Eu, eu não sei porque é que comecei a odiar os Tutsi. Eu era novo e o que eu mais gostava de fazer era jogar futebol: eu jogava na equipa de Kibungo com outros rapazes Tutsi da minha idade, passávamos a bola entre nós sem problemas. Nunca notei desconforto na companhia deles. O ódio apareceu na altura da matança; eu imitei os outros na sede do ódio, para pertencer ao grupo.
Testemunho de Léopord: É estranho falar de ódio entre os Hutus e os Tutsi, porque as palavras mudaram de significado depois da matança. Antes, nós podiamos estar na galhofa a dizer que os íamos matar a todos e no momento seguinte estar a compartilhar com eles uma bebida ou trabalhar lado-a-lado. Misturávamos as piadas e as ameaças. Já nem ouvíamos o que dizíamos. Podíamos pronunciar palavras horríveis sem pensamentos horríveis. Os Tutsi nem ficavam muito chateados. Quer dizer, eles não se iam embora quando começavam aquelas discussões. Mas agora pudemos ver: aquelas palavras trouxeram consequências terríveis.


A ideia está ali a gravitar: aqueles são outros, maus, perigosos, diferentes, manhosos, desmerecedores da vida, outros. Mas o mais fundamental e surpreendente é o poder da palavra. Num momento em que se discutem as palavras e o politicamente correcto como entediante censura social, seria importante aprender a lição de que as palavras têm poder. Chamar escarumba, paneleiro, puta, judeu a alguém, é mais do que dar nomes, é colocar aquela pessoa numa determinada esfera humana, que segundo o sentido dessas palavras pode ser uma esfera para lá dos laços de irmandade que nos protegem mutuamente do mal que somos. Não é o politicamente correcto que está a reinar, quando escolhemos ter cuidado com as palavras, mas aceitar o poder das palavras como decantadores de ideias, preconceitos, semente de violência contra o grupo adjectivado. Ter cuidado com as palavras que se usam com as pessoas é o humanamente correcto. É ter a inteligência de aprender com a história quem somos e do que somos capazes.

Testemunho de Adalbert: O genocídio não é uma ideia de guerras e batalhas. É uma ideia que as autoridades têm - de se livrarem de um perigo de uma vez por todas. Uma ideia conveniente que não necessita de ser nomeada ou encorajada, para lá de umas orquestrações maliciosas. É uma ideia bastante comum quando voa de palavra em palavra, por vezes, de piada em piada; torna-se extraordinária quando é apanhada na ponta das machetes.

Esta ideia não morre com as mortes, não morre depois da vitória ou depois da derrota. Autoridades no futuro podem recuperá-la para outro destino. Mas como pode alguém matar uma ideia, usada de forma tão extraordinária, se não se souber como matar a palavra, que a pode chamar à vida? Matar os inimigos, matar quem nos faz mal, matar os vizinhos - isto pode-se entender. Matar ideias e palavras - isto vai para além da inteligência, a inteligência de um camponês, pelo menos.


Tradução minha.
(continua)

terça-feira

Fingimento



São gotas grossas, metálicas, que caiem pelos telemóveis. Eu respiro muito devagar. Sou extremamente prática, racional, deixo o meu cérebro possuir-me, recta aguda, sem floreios, uma missiva formal de fim pontuado. Termina. Acaba. Silêncio. A recta transforma-se em punhal, abre-me de cima abaixo e deixa-me a escorrer pelos lençóis da cama. Parece que vou morrer, mas eu sei que é só fingimento do meu corpo. Fecho os olhos e deixo-me ir pelo chão de madeira, o sangue chega às escadas e desce-as, sai para a rua e faz um caminho vermelho invisível. Lento. Gelatinoso. Nojento. Deixo-me ir, mas sei que é só fingimento.


Amber Under Hours 2006
Acrylic and Pencil on Birch Panel
Sherry Wong

segunda-feira

Leituras

The Gross-Out Factor, Pauline W. Chen

(...) Pavlov, of the drooling dog fame, believed that habituation could be simply reversed. Others have asserted that repeat sensitization could interrupt a learned reflex. But for our human quandaries, extricating ourselves from habituation and the inevitable sliding ideals requires another, more complex process altogether. (...)



Welcome to 'Palestine', Robert Fisk

(...) I recall years ago being summoned to the home of a PA official whose walls had just been punctured by an Israeli tank shell. All true. But what struck me were the gold-plated taps in his bathroom. Those taps—or variations of them—were what cost Fatah its election. Palestinians wanted an end to corruption—the cancer of the Arab world - and so they voted for Hamas and thus we, the all-wise, all-good West, decided to sanction them and starve them and bully them for exercising their free vote. Maybe we should offer “Palestine” EU membership if it would be gracious enough to vote for the right people? (...)

sexta-feira

Linoleum



Tweaker & David Sylvian

quarta-feira

Tédio

Pára-me de repente o Pensamento...

— Como se de repente sofreado

Na Douda Correria... em que, levado...

— Anda em Busca... da Paz... do Esquecimento



— Pára Surpreso... Escrutador... Atento

Como pára... um Cavalo Alucinado

Ante um Abismo... ante seus pés rasgado...

— Pára... e Fica... e Demora-se um Momento....



Vem trazido na Douda Correria

Pára à beira do Abismo e se demora



E Mergulha na Noute, Escura e Fria

Um Olhar d’Aço, que na Noute explora...



— Mas a Espora da dor seu flanco estria...



— E Ele Galga... e Prossegue... sob a Espora!



Ângelo de Lima. Publicado em várias revistas literárias, com ligeiras alterações, de 1900 (O Portugal) a 1935 (Sudeste).



Ler um poema é também dialogar com as suas leituras anteriores e virtuais. Não posso deixar de mencionar que, embora o soneto não tivesse título no original autógrafo, e assim tenha sido mantido pelo seu editor, recebeu às vezes, nas versões publicadas, o de Tédio. Não se trata, obviamente, de um título escolhido ao acaso. As imagens e o ambiente do poema prestam-se, sem dúvida, à aproximação com a literatura do «mal do século», o spleen ou melancolia. Alguns dos temas e motivos encontrados no «dicionário da melancolia» (Pierre Dufour), em autores como Baudelaire e Borges, reconhecem-se no texto: a escuridão, a dor, a obsessão pela queda no abismo, a figura debruçada sobre o abismo ou sobre o espelho, etc. Essa leitura condiciona-se também pela circunstância de ter estado o poeta internado no hospital psiquiátrico de Rilhafoles, desde 1901 — isto é, um ano depois da primeira publicação do soneto (O Portugal, 12.6.1900) —, até a sua morte em 1921, o que talvez motivasse Fernando Pessoa a observar, ao publicá-lo no Sudoeste, em 1935, que nele o poeta descreve a sua entrada na loucura, em que longos anos viveu e em que morreu.

A controversa possibilidade de que a linguagem seja apta a dar voz à loucura (por mover-se fatalmente dentro dos limites da racionalidade) obriga-nos a tomar a observação de Pessoa com cuidado e, libertando-a do círculo logocêntrico, removê-la para zonas limítrofes. Com efeito, estudos sobre a literatura melancólica, a relação entre melancolia e gênio e o «discurso da loucura» têm ajudado a mapear territórios que, sem se distinguirem com absoluta nitidez, configuram tendências e delineiam certas zonas passíveis de sobreposição parcial: os discursos da cultura e da poesia e o discurso clínico. Desse ponto de vista, a experiência do tédio pôde ser considerada uma situação preliminar à precipitação na melancolia psicótica, e essa, às vezes, ser vista coexistindo, num mesmo autor, com a melancolia como estado de ânimo. O que aproxima os textos melancólicos, em geral, do poema de Ângelo de Lima, além dos motivos já mencionados, é a particular vivência do tempo: a oscilação entre a exaltação e a tristeza, com tendência à imobilização e rigidez, nulificando a dor e a esperança. O próprio Ângelo de Lima, na sua Autobiografia, confessa que se conservava horas imóvel quase na contemplação e reflexão sobre um só objecto, brinquedo ou espectáculo da natureza, atento fixo. Toda experiência de tédio ou de melancolia faz-se acompanhar de uma modificação na percepção do tempo, que se retarda e se detém, na sua fase depressiva. A assimetria entre o tempo interior, que tende à inércia, e o do mundo objetivo, constitui, dessa forma, uma categoria hermenêutica essencial para entender a profundidade da modificação fenomenológica do tempo na melancolia e no tédio (E. Borgna). Na vivência do tédio, portanto, o alongamento ou a extensão do presente traz como conseqüência a perda da noção de futuro e a redução do passado à sensação de aceleração que precede o presente. Já vimos como essas duas dimensões temporais são o arcabouço do soneto em causa.


Yara Frateschi Vieira